A garota - V

E o tempo corroia-lhe a alma. Dias, mais dias.

O tempo feio e escuro no apartamento de fundos no prédio de três andares.

Sem espaço para brincadeiras. O corredor, a sala, os quartos pequenos, a cozinha que dava para uma varanda que se traduzia apenas no espaço para pendurar as roupas.

Chegou a geladeira. A grande novidade do dia, daquele mês, daquele ano, quem sabe.

Uma geladeira Frigidaire. Para ela, imensa, monumental, de um outro milênio.

Gosto de cinza na boca. Falta de risos. Falta de saúde. Falta de equilíbrio.

Feijão requentado.

Algumas balas ganhas da vizinha que sentiu compaixão pelas duas crianças quando a irmãzinha chegava da maternidade.

A dona Gilda sorria bonito, com rostinho avermelhado, para os pequenos. Entendeu que ficariam a reboque com a chegada de uma menininha. As balas tiveram efeito reconfortante.

O brigadeiro longínquo. O macarrão com frango de domingo. Uma vez por mês, uma coca tamanho família e uma malzbier para o pai que não sorria.

O tempo...matéria prima das reflexões, do desenhar caminhos, do romper com os sonhos, do deixar fluir uma primavera muito, muito tardia.

Kika A Moraes
Enviado por Kika A Moraes em 25/09/2018
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