UMA ONÇA NO MATO GROSSO

Há estórias que não devem ser contadas. Essa é uma delas. Toda vez que me lembro, peço perdão a São Francisco, o santo protetor dos animais.

UMA ONÇA NO MATO GROSSO

De 1982 a 1986 fui gerente de obras no Mato Grosso, responsável pela execução de cinco obras hidrelétricas, todas em plena floresta amazônica. Às segundas-feiras, eu embarcava em um pequeno avião monomotor no aeroporto de Cuiabá e visitava as obras durante a semana, retornando quinta ou sexta feira. As pistas de pouso eram de terra, algumas eram trechos alargados das estradas. Sem sinalização, sem área de aproximação. Situação para Indiana Jones não achar defeitos. As obras da Usina Hidrelétrica de Salto Apiacás tinham sua pista de pouso em trecho mais largo da estrada de acesso à obra. Antes de pousar sobrevoávamos o canteiro de serviços, que ficava a seis quilômetros da pista, para o motorista apanhar os visitantes.

Estávamos em um período de espera para início de novo contrato. Várias vezes ouvimos esturros de onça nas cercanias da pista. Meu pessoal construiu uma jaula com 3 metros de comprimento e ao fundo havia um dispositivo que, quando pisado, trancava a entrada. Um alçapão gigante. Colocou-se um generoso pedaço de carne no local a ser acionado. Esturro é um rugido alto, profundo, que os felinos emitem não se sabe o motivo, mas parece marcar a sua presença na região e alertar ou intimidar avisando que a floresta tem dono. É bastante assustador. As onças são as rainhas das florestas do Brasil.

Desembarquei do avião e Osvaldão me aguardava. Com seu sotaque mineiro, contou-me que haviam fabricado e colocado a armadilha para apanhar a onça que estava rondando o acampamento. Fomos de camionete até o local. As onças gostam de comer carne exalando odor, carne fresca não é sua preferência segundo o pessoal mateiro. Como já se haviam passados 3 dias que a isca estava no local, provavelmente o animal fora atraído pelo cheiro. Não deu outra. Lá estava presa na jaula uma bela onça pintada. De imediato fiquei contrariado com a apreensão da onça e falei muito na cabeça de todos, Quando desci do carro, a bicha deu um bote do fundo até a frente da jaula, que me apavorou. Que animal lindo. Dentes enormes, patas musculosas e grandes, ferocidade, e uma grande agilidade. Fiquei pasmo ao ver de perto um bicho maravilhoso como aquele. Passado o primeiro momento, surgiu a pergunta: o que fazer com uma onça? Fomos ao canteiro de obras buscar auxílio de pessoas que conheciam bem as coisas da floresta. Todos vieram ver aquele animal. Havia cerca de uns vinte cachorros na obra, e os peões os trouxeram para cheirar o bicho. O animal inspirou terror nos cães, de tal modo que estes se urinaram e ganiram de medo, à exceção do Apiacás, o primeiro cachorro chegado à obras, quando era um filhote. Para quem não sabe, é um costume de arrebanhar cachorro em obras no meio do meto, pois o pessoal cria com carinho e comida não falta.

Bom, o que fazer com a onça? Decisão difícil. Analisamos as alternativas possíveis: A) soltar o animal não foi aceito, pois a risco de a onça voltar e entrar no canteiro de obra era grande, além de nenhum dos homens quis arriscar acionar a porta da jaula e ser atacado. B) Levar a onça para Alta Floresta e doá-la para o zoo da cidade. Quem iria passar aos cabos de aço para colocar a jaula no caminhão? Não apareceu nenhum voluntário. C) Matar o animal.

Para minha tristeza, a maioria decidiu pela terceira alternativa. Há quarenta anos atrás não havia a consciência ecológica de hoje e até hoje trago o remorso de ter aceito o sacrifício de um símbolo de nossas matas. Foi muito triste. Mandei destruir a jaula e proibi de se repetir a iniciativa. Mas o mal estava feito.

Paulo Miorim

Santos, 25/09/2018

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 25/09/2018
Reeditado em 11/09/2021
Código do texto: T6458871
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