Aguardando os urubus

A relação daqueles dois estava à deriva há séculos. Eram dois estranhos atados pelo lastro puído do cotidiano. Desse jeito levavam suas histórias num balaio encardido, enredo desafinado e gelado que só faziam ecoar e ecoar. Casal que teve seus frutos, até de 4 patas, que regeu uma partitura que, por vezes, se dizia encantada, por vezes cumpria seu legado com gozos floridos e até memoráveis. Mas o tempo, sempre impassível diante de certos marasmos, foi corroendo suas almas, com baluartes de monge, pedaço a pedaço. O tempo, feroz para devorar pétalas aprumadas da paixão, os relegou à condição de zumbis vagando sem rumo, sem credo, sem dono. Se trombavam vez por outra nas catacumbas do chamado lar, obrigando-se mutuamente a grunhir pálidos, roucos e toscos acenos verbais. Um casal à beira de uma absoluta falência de órgãos, apodrecendo em vida e só aguardando os urubus chegarem para o banquete derradeiro. Mas havia uma saída. No meio de todo o lixão em que se travestiu seu cotidiano, tinha uma fagulha de amor meio jogada num canto qualquer, já corroída pelas ferrugens de um sangue sofrido, desgastado, expulso de suas veias sem dó. Esse micróbio de amor resistia aos turbilhões de um descaso vil, chicotadas que a toda hora faziam valer seus berros de animal no matadouro. Um amor já disforme, coalhado, arredio no seu próprio colo. Um amor de útero revirado, pele enrugada pelas atrocidades dos descasos gotejados pela vida. E foi justamente esse amor, incólume e calado, que arrebatou uma ribalta salvadora. Esse teco de nada, uma sobra mal ajambrada do sentimento maior, sacudiu as ancas mancas daquele casal em ruínas. E os trouxe ao canto dourado da redenção. Os fez voltar aos braços daquela paixão que fugira apressada sem dar adeus. E os fez reerguer dentro de si mesmos a vontade de se acarinhar, de se misturar, de se penetrar um no outro. Assim saíram de uma deriva eterna para estrearem sua apoteose triunfal. Com todos os quitutes, prazeres e felicidades que tanto mereciam, mas que só faziam escorrer pelos poros atrozes do desencontro.

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 25/09/2018
Reeditado em 25/09/2018
Código do texto: T6458754
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