Millennials: Selfie-stick com desconto e a habilidade de governar nações
Eis que, após pouco mais de um ano da minha chegada na Europa, meu irmão veio visitar-me. Mas não foi assim dessas viagens de “fui”. Precisou, primeiro, criar algumas coisas: criou coragem para o longo voo (acredito que o segundo da vida e o primeiro sozinho), criou uma poupança para financiar a viagem e é claro, um roteiro - este criamos juntos. Como tínhamos expectativas semelhantes em relação à viagem e também as mesmas limitações - tempo e dinheiro - criar o roteiro acabou revelando-se uma tarefa fácil. Fomos à Amsterdã, Barcelona, Londres e, por termos boca, fomos também à Roma. Esta serviu de palco não apenas para os famosos imperadores, inventores, soldados e artistas sobre os quais lê-se nos livros de história, mas também para o acontecimento que estou prestes a descrever. Acontecimento o qual me fez despertar para a responsabilidade que haveria de assumir um dia e o qual provavelmente impressionou qualquer passante que encontrava-se por perto e presenciou a situação. Explico-me.
Estávamos a andar pelas diversas ruelas e praças de Roma até que em uma destas resolvemos sentar-nos e descansar (a memória, porém, ciumenta como só ela, não me autorizou a compartilhar o nome da praça.) Enquanto lá estávamos, entre conversas sobre quais possíveis eventos ali um dia aconteceram, sanduíches e fotos dos belos monumentos, fomos abordados. Abordagem esta que, enquanto não necessariamente amigável, era menos ainda ameaçadora. Tratava-se de uma oferta.
O homem que nos abordava carregava em seu ombro direito uma bolsa, parecida em formato àquelas em que leva-se tacos de golf e em aparência àquelas de plástico de supermercado. Haviam vários destes homens naquela praça. Ao meu olhar de turista, todos eram muito parecidos, como se viessem da mesma região ou até mesmo pertencessem à mesma família. Todos tentavam vender algo. Diferenciavam-se, porém, em dois aspectos: nas bolsas em que carregavam e nas estratégias usadas para abordar os que naquela praça estavam. Quanto às bolsas, alguns carregavam-as em um só ombro, outros como mochila de costas. Outro grupo levava, em um braço, o que num primeiro olhar parecia um mapa ou um pergaminho gigante, mas que após alguns segundos, revelava ser um pano enrolado em um pedaço de madeira, este suspenso por uma corda. Ao encontrar um possível comprador, o vendedor desenrolava o pano e pendurados neste haviam diversos brincos, chaveiros, imãs e pins. Haviam ainda os que levavam grandes bolsas em carrinhos de mão e também aqueles que expunham seus produtos no chão, como pares de tênis ou camisetas de clube falsificadas. Cada grupo e bolsa com seu tipo de produto. Tudo muito bem organizado - como se cada área fosse destinada a um tipo de comércio. E naquele momento, sentados naquele banco em frente à fonte da praça, encontrávamos-nos na área dos vendedores de selfie-sticks. Já quanto à estratégia que utilizavam, as diferenças eram mais gritantes. Assim como os animais da selva, cada um deles tinha um comportamento muito peculiar para impressionar e encurralar suas presas. Haviam os que, como os gorilas fazem ao bater no peito, gritavam do fundo de seus pulmões e giravam suas matracas para chamar a atenção do maior número possível de pessoas de uma só vez. Haviam também as moscas, que abordavam os turistas de uma maneira sutil, mas constante, incomodando por um tempo e logo indo embora aos primeiros sinais de irritação e movimentação mais agitada. Os ursos, num primeiro momento agressivos em suas abordagens, davam meia volta após o turista fazer-se de morto fingindo não perceber a presença do vendedor. As águias eram um pouco diferentes. Analisavam minuciosamente os turistas da praça e, apenas quando tinham plena certeza de ter achado o perfil de um possível comprador, engatavam num voo rasante para dar o bote na presa. A este grupo pertencia o homem que nos abordava.
“Signore”, começou dizendo, “vejo que é um homem que está de férias em nossa cidade e que gosta de fotografias. Que tal melhorar a qualidade das fotos, e assim também das lembranças, com este selfie-stick? Um singelo investimento de 15 euros que lhe trará belos retornos por anos”. Uau. O homem vendia como um profissional. Mas nem por isso perdi a compostura.
Veja bem leitor, não sei se já citei isto por aqui, pois não escrevo de forma cronológica. Escrevo como me convém ou quando as lembranças me batem à porta. Quando a abro, lá está esta criança, com olhos brilhantes e uma voz meiga que diz: doces ou travessuras? Coração mole que sou, acabo optando quase que sempre em ceder ao doce: cravo as lembranças ao papel através da escrita. Desta maneira sei que a criança sempre voltará. Deixá-la ir embora de mãos vazias, sem ao menos uma linha, sem ao menos uma foto, é travessura grande demais.
Mas chega de devaneios. Como vinha dizendo, não sei se já citei isso aqui, mas à época do acontecimento eu era um rapaz no auge de meus 21 anos. Já acumulava uma enorme bagagem em negociações adquiridas através de aulas da faculdade, programas do “Trato Feito”, vídeos no YouTube e livros de gurus. O fato de que era uma das primeiras vezes que estava negociando de verdade em minha vida era de pouca importância. Sentia-me preparado. Estava decidido que não seria pego pelas garras da ave de rapina.
Resolvi fazer-me de tatu-bola: me enrolaria e lhe ofereceria meu duro casco, evitando assim o seu primeiro ataque. Quando o corpo já estava todo enrolado, logo que estava prestes a fechar a última fresta vulnerável com a cabeça, soltei: “Ofereço 3 euros”.
Caro leitor, entendo que a memória, além de ciumenta, é também traiçoeira: por vezes implanta acontecimentos em nossa mente que não aconteceram ou que aconteceram de maneira bem diferente daquela que nos recordamos. Entendo também que muitas vezes nossa vista está cansada e estas malditas letrinhas, tão pequenas… Mas juro-lhe que não é um caso nem o outro. Escrevo este parágrafo com a memória ao meu lado, como um cão fiel e a vista vai muito bem, obrigado. Ofereci-lhe de fato 3 euros.
Sua reação, confesso, achei curiosa. Disse-me para ir a um tal de “vaffanculo”, virou-me as costas e foi embora. Fiquei intrigado. Sua reação, para águia, não servia. Menos ainda para mosca ou para gorila. Seria o vendedor urso? Ou teria eu sido porco-espinho ao invés de tatu? A resposta à minha pergunta veio logo em seguida.
Após alguns minutos, talvez até segundos, ouço a mesma voz. “Signore”, dirigia-me novamente o vendedor enquanto preparávamo-nos para seguir caminho, agora num tom mais firme do que aquele da primeira abordagem, “veja bem este selfie-stick, não se trata daquelas porcarias da China. Este aqui é de qualidade, poderá usá-lo por anos! Veja a borracha, veja os detalhes do metal, veja como é leve” disse-me, enquanto suspendia o produto no ar. Finalizou este segundo ataque com “Quer testá-lo? Pode tê-lo por 10 euros”, dando-me o selfie-stick em mãos. Logo percebi que o vendedor havia mudado sua estratégia: mudou não só o tom, mas a postura, os adjetivos. Foi mais objetivo desta vez. Tratava-se de raposa.
Não sou um grande fã de ditados, superstições e crenças populares. Mas uma frase ecoou na minha mente naquele momento. “Em time que está ganhando não se mexe”. E assim o faria. Não mexeria no meu time, pois, a meu ver, estava ganhando. Estava confiante, sentia uma energia em meu corpo, algo que ainda não havia entendido. Repetiria a estratégia. Peguei o selfie-stick e comecei a analisá-lo. Comecei a resmungar enquanto começava a me enrolar em meu casco: “veja bem, amico, na verdade a borracha está…, e o metal tem... , também o cabo… e tem mais isso aqui…”. Novamente, quando só havia a fresta para a cabeça, soltei “3 euros é o que posso oferecer”, fechando-me completamente em meu casco.
Desta-vez o vendedor tentou o gorila: começou a bufar, falar alto e gesticular intensamente. Andou em círculos por alguns segundos, resmungando para si mesmo, até que retomou a compostura de raposa e disse: “Signore, não quero aqui enganar alguém. Pode ser que meu produto não seja o melhor do mundo, mas posso garantir que algumas belas fotos o senhor terá. Com certeza até o fim da sua viagem ele resistirá. Por 5 euros, não é um mau investimento, não é mesmo? Afinal, também preciso pagar minhas contas…” Confesso que com este ataque, fraquejei. Mas já havia chego muito longe para desistir. A energia em meu corpo crescia cada vez mais. Sentia que aquele momento representaria algo maior para mim.
Agarrei-me ao meu ditado e permaneci tatu. Levei a mão direita ao bolso da calça (o que fez os olhos do homem brilhar em esperança), puxei algumas moedas, coloquei-as sobre a mão esquerda e destas, separei três euros. O brilho sumiu assim que percebeu o valor das moedas. Em seu olhar percebia-se agora um semblante carregado. Mistura de frustração e impaciência. Expressão clássica de fila de banco.
“Como disse, amico, 3 euros é o máximo que ofereço. Take it or leave it.” (em algum ponto da conversa, o homem desistiu de tentar entender meu italiano barato e partimos para o inglês.) O homem pensou, pensou e pensou mais um pouco. Foram alguns segundos que pesaram como horas. Sentia meu corpo vibrando cada vez mais com a energia que não conseguia explicar. De repente, o semblante foi substituído por um riso leve mas sincero. Decidiu aceitar a proposta. “Dá-me o denaro e some daqui antes que eu mude de ideia”, disse em tom jocoso. Fizemos a troca, nos despedimos e fomos embora.
Foi só neste momento que entendi aquela energia. Que me dei conta da importância daquele momento. Da responsabilidade que deveria assumir. Um jovem de 21 anos com tanta habilidade com pessoas, com negócios. Tudo isto sem ter que passar por todos aqueles lentos e dolorosos anos de experiência que, conta a lenda urbana, são essenciais na vida profissional. Talvez devesse assumir um grande cargo em uma multinacional. Ou talvez devesse até mesmo abrir imediatamente minha própria empresa. Talvez deveria virar um consultor, um coach.
Não quis exagerar no momento, mas pensei comigo mesmo que, com um bom padrinho e bastante dedicação, poderia talvez em 6 meses ou um ano tornar-me um grande líder, uma figura política de relevância nacional. Talvez até internacional, por que não? Já tinha uma grande negociação no exterior em meu currículo. Nada poderia me segurar.