Bendito cuspe
Quando cospem na gente, estão, na verdade, nos atirando flores.
Porque todo desprezo embebido num cuspe será um bálsamo para nos regenerar, por dentro e por fora.
Vai colocar nossa alma no olho do furacão, vai embebedar cada teco da nossa razão para que perca seu rumo, vai nos matar várias vezes, várias vezes e várias vezes.
Depois que esse cuspe cumprir sua função de nos reduzir ao micróbio do micróbio, secando de vez todo nosso sangue e trucidando cada osso, cada músculo, cada pedaço da gente, ele vai sossegar.
E vai deixar tudo ficar assim na eternidade da dor, da tristeza, do pesar.
Então quando nada mais nos restar, a vida se lembrará que um dia existimos e nos chama de volta, berrando até ensurdecer Deus.
Nessa hora, os frangalhos a que nos reduzimos se repletam da mais aguçada energia do universo.
Assim, pouco a pouco, vamos recompor os grãos inertes do que ficou da gente certo dia.
Vamos nos reencarnando envoltos numa couraça que nunca pensamos ser possível.
E de repente voltamos o palco, revestidos de uma força descomunal, para transformar em nada tudo que, outrora, nos detonou tanto, sangrando o que tínhamos de mais precioso: a nossa capacidade de acreditar em nós mesmos.
Bendito cuspe que nos fez tanto mal e tanto bem ao mesmo tempo.