CARTA A UM AMIGO DE INFÂNCIA

 

São Leopoldo, 09 de fevereiro de 2007.

 

Em 1956, meu pai Sargento do Exército, foi transferido da cidade de Bagé para São Borja.

Chegando a esta cidade fomos morar próximo ao quartel, no Bairro Passo. Lembro-me que a rua em que eu morava era conhecida como a rua do presídio. Nunca esqueci que certa vez quando brincava com o filho de nosso vizinho, provavelmente com a mesma idade que eu. Certa vez estávamos mexendo em álcool e água quente, bati sem querer em uma vasilha, e esta derramou sobre suas pernas, causando-lhe sérias queimaduras.

Ao quartel eu tinha acesso fácil por ser filho de quem ali servia e diariamente ia treinar sozinho basquete, rendendo-me um bom treino, esporte que pratiquei por longo tempo em minha vida. Tinha eu dez anos de idade. Fui matriculado no Colégio Getúlio Vargas, na terceira série do curso primário. Todos os dias antes de me deslocar ao colégio eu tinha a missão de ir buscar leite no “tambo” que existia nos fundos do quartel. Naquele tempo o “castigo” para quem conversava durante a aula era ficar em pé em uma sala que ficava, junto a nossa sala de aula. Algumas vezes é claro fui premiado.

Para me deslocar ao Bairro Passo eu ia de ônibus. Lembro-me que minha professora tomava o mesmo ônibus e eu via onde ela descia e também em conseqüência onde morava. Certa vez quis fazer um agrado à mesma, comprei uma maçã e bati na porta de sua casa e entreguei a mesma, com isto angariando a sua simpatia.

Não esqueço o meu deslumbre quando pela primeira vez conheci o Rio Uruguai, com o seu caudaloso manancial de água. Em uma das idas até este, com meu pai, em um piquenique à sua margem, ele nadou comigo agarrado em suas costas.

Outro fato em minha lembrança era as idas às sextas-feiras até São Tomé, cidade que ficava do outro lado do rio, já na Argentina. E eu sempre ia junto com meu pai ou minha mãe, fazia questão de ir porque era uma aventura subir pelo Rio Uruguai sentado na proa do barco, vendo o seu avanço rio acima e ouvindo o ronco do motor do mesmo. Estas viagens eram semanais, lá se comprava, a um preço muito baixo, maçãs, balas Cremalim, azeitonas, pães, etc.

Após um ano fomos morar na rua do cemitério, onde hoje estão sepultados, Getúlio Vargas, João Goulart e Brizola. Naquela época também era a rua do meretrício. Lembro-me de uma traquinagem, colocamos uma cédula na ponta de uma linha, alguém levou até o outro lado da rua e ficamos esperando que alguém se abaixasse para pegá-la. Não demorou muito até que uma das “moças” do meretrício aparecesse e fosse a “sorteada”. Era uma bela mulher, morena, cabelos longos. Minha mãe tinha um ciúme da mesma, não sei porque!

Ao chegar na nova morada, fiz amizade com um garoto da minha idade. Como nós dois convivíamos diariamente a amizade foi se tornando maior e passei a freqüentar a sua casa. Sempre tínhamos que preencher o tempo com algo. Arco e flecha era moda dos guris da época. Em sua casa havia alguns “pés de pêra”, apanhávamos algumas, colocávamos sobre o muro, uma ao lado da outra e as vendíamos, muito pouco é claro, mas quando as vendíamos era uma festa.

Aos domingos à tarde eu ia ao cinema sozinho na matinê das duas horas. Certa vez passou o trailer do filme das quatro horas, era tão deslumbrante que voltei correndo à minha casa pedi dinheiro para a “entrada” e voltei novamente correndo. O nome do filme era “Trapézio”, com Gina Lollobrigida, Burt Lancaster e Tony Curtis, lançado em 1956, pela United Artists.

Este amigo era filho de um dos pilotos de Jango. Ele possuía uma Kombi, novidade na época, recém lançada pela Volkswagem. Quando vinha de Brasília, este piloto dava um vôo rasante sobre sua casa, aquilo era um aviso para que sua esposa fosse buscá-lo na fazenda de Jango. Como eu sempre estava com meu amigo, íamos juntos. Lembro-me que certa vez lá chegando, vi duas crianças, por volta de três anos de idade. Eram João Vicente Goulart e Denise Goulart, filhos de Jango. Estavam sentados em balanços e eu prontamente passei a balançá-los. Olhei para o lado e ali estava o então Deputado Federal João Goulart sentado na soleira da porta, de bombachas e alpargatas, tomando solitariamente um chimarrão.

Estas são algumas lembranças de um adolescente que morou em São Borja, quando o Brasil ganhou a primeira Copa do Mundo em 1958, por 5 a 2, da Suécia. Ali começava a era Pelé. Para festejar este feito, meu pai foi a uma janela lateral de nossa casa e descarregou seu revólver, aí entendi então que éramos campões mundiais.

Em 1959 meu pai foi novamente transferido, desta vez para Cruz Alta. Nunca mais vi o meu amigo e nem tive notícias de sua família. Vieram então as crises políticas e de vez em quando lembrava eu da minha passagem pela cidade onde personagens da vida política eu conhecera então.

Passado agora, meio século, hoje eu com 60 anos de idade, achei por bem saber onde eu encontraria o meu amigo de infância.

Passei a fazer contatos, inicialmente com políticos, depois pela internet, nesta localizei seu endereço e telefone, ninguém atendeu. Após uma série de informações, fiz algumas ligações telefônicas até que alguém me informa que o meu amigo seria médico e o localizaria na Santa Casa, em Porto Alegre. Soube que seu pai era falecido. Liguei para a Santa Casa e sua secretária me informou que este estava em férias e voltaria tal dia.

Este texto será entregue a ele em primeira mão. Não sei se a memória lhe virá a tona, mas vou aguardar o seu chamado. Para mim é importante reencontrá-lo. Creio que o verei em breve.

 

Passados alguns dias, este médico voltou de férias, recebeu a carta, a leu e não reconheceu os fatos narrados por mim. Então chamou seu irmão e lhe disse que pelo que havia lido, deveria tratar-se dele.

Estava eu sentado tomando um cafezinho no centro da cidade, toca o meu celular e ao atender alguém diz que havia recebido a minha carta e que ele sim era a pessoa a quem eu procurava. Havia eu atingido o objetivo de encontrar um amigo de quase meio século atrás.

Após conversarmos um pouco por telefone combinamos então de nos encontrar em sua casa. Era uma quinta feira antes do carnaval de 2007, quando falamos por telefone. O combinado encontro era para após o carnaval, mas a expectativa do nosso reencontro foi maior e então liguei para ele e aí sim nos encontramos no sábado de carnaval, à tarde, antecipando o combinado.

Após recordarmos dos tempos passados na infância o meu amigo presenteou-me com um livro autografado, onde é relatada a vida de seu pai como piloto de João Goulart (Jango). E a ele entreguei o opúsculo “A Saudade Criança”, por mim escrito, contando minha volta após 56 anos à minha terra natal, Santiago. História esta contada em quadrinhas rimadas.

Termina aqui a historia da busca de um amigo de infância. Vivi algo que não é comum na nossa sociedade de consumo onde os valores afetivos foram esquecidos. 

 

 

Valter Jorge Schaffel
Enviado por Valter Jorge Schaffel em 09/09/2007
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