Saúde em primeiro lugar
Eles não tinham plano de saúde e não podiam sequer cogitar pagar uma consulta particular. Eram tempos difíceis em que qualquer imprevisto geraria um rombo no orçamento familiar. Convinha, mais do que nunca, evitar os gastos médicos. Se não fosse assim, ela teria iniciado um tratamento psicológico. Sofre muito de ansiedade, sabe que isso prejudica a sua qualidade de vida, mas não faz nada a respeito, porque o tempo não é propício para essas coisas.
E agora o problema era com ele. Misteriosas dores haviam começado há algumas semanas. Como todo mundo, ele esperou que as dores sumissem por si só. Já havia tido problemas de saúde antes, havia gastado com exames e remédios, até que, de um dia para o outro, o problema simplesmente sumira. De certo o mesmo iria acontecer agora. Era melhor não se preocupar à toa e levar a vida normalmente.
No outro dia, a dor havia aumentado. Ainda assim, achou que o momento não era de desespero. Não contou nada à esposa, queria poupá-la de mais uma preocupação, tanto mais que, provavelmente, a dor em breve iria sumir e tudo ficaria como antes. Só o que fez foi pesquisar na Internet a respeito do seu problema, em busca de algum remédio natural que agilizasse o seu inevitável processo de cura. Mas a gente sabe como é pesquisar doença na Internet. A mera gripe é tratada como questão de vida ou morte. Uma série de doenças potencialmente fatais estava associada aos seus sintomas. Dessa vez ele começou a se preocupar e cogitou realmente ir ao médico, mas não tinha plano de saúde, não tinha meios de pagar uma consulta particular e não queria ir ao posto.
“Vamos ver como vai estar amanhã”, pensou. Dormiu um sono agitado naquela noite, acordava com frequência, e a cada vez que acordava procurava perceber se a dor ainda estava lá – e sempre estava. No outro dia foi trabalhar normalmente, mas tentou fazer diferente uma porção de coisas, para ver se, de um jeito ou de outro, não atinava com a solução do seu problema. No fim da tarde, entretanto, a sua dor beirava o insuportável e ele teve que resignar à ideia de ir ao posto de saúde na manhã do dia seguinte.
Aí não foi mais possível esconder da esposa, já que ele levantou muito mais cedo do que costumava fazer. A esposa se preocupou, sugeriu uma série de sacrifícios que, em síntese, significavam “a saúde em primeiro lugar”, mas ele sabia que não era simples assim. Foi ao posto de saúde. Chegou lá às seis da manhã, mas o posto só atendia 15 pessoas por dia, e àquela hora já havia 15 pessoas na fila. Saiu de lá resmungando. Voltaria no outro dia mais cedo.
No outro dia, no entanto, ele não foi. Achou que a dor havia dado uma estabilizada e, de vez em quando, parecia até que estava menor. Sinal de que já estava passando. Dali a alguns dias tudo voltaria ao normal. Entretanto, dali a alguns dias a situação não havia se modificado, e com frequência ele tinha uns acessos terríveis. Ere preciso retornar ao posto.
Chegou lá às 4h30, e já tinha gente esperando. Mas, por sorte, conseguiu fazer parte dos 15. Falou com a médica, que, como de hábito, insinuava que fosse alguma virose. Receitou alguns medicamentos, meros paliativos que aliviavam sintomas, mas nada faziam em relação à causa, por ele desconhecida.
Sentiu-me melhor depois de tomá-los, o que se explica pelo efeito placebo. Quando os comprimidos acabaram, ele já estava sentindo dor de novo. Sem dúvida seria preciso fazer algum exame, o problema é que, na rede pública, isso levaria meses. Já que era assim, ele esperaria esses meses para receber o 13º salário. Com ele pagaria um médico particular.
Não deu tempo. Alguma coisa arrebentou ou estourou dentro dele ali por novembro – só um mês antes que recebesse a sua gratificação de fim de ano.