A puta
que virou rainha
1. Fui à Rua da Faísca, no centro de Salvador, e lá dei de cara com Ana Luiza. Fazia décadas que não nos víamos. Continua linda!
2. Falemos primeiro sobre a Rua da Faísca, onde morei um longo tempo e dela tenho saudades. Segundo me foi dito, a Faísca mudou de nome, mais uma vez.
3. Quando lá fui morar, início de 1960, deram-lhe o nome de Rua Senador Costa Pinto. Agora, prolongamento da Rua Carlos Gomes (1836-1896), o nome do respeitado político baiano Costa Pinto foi substituído pelo do compositor de "O Guarani". Continuarei, porém, chamando-a de Faísca. Me perdoem.
4. Minha passagem pela Faísca, como disse, foi longa e saudável. De lá saí para casar na encantadora igreja de São Francisco de Assis, no Terreiro de Jesus, Centro Histórico da capital baiana. E fui morar com Ivone na famosa Avenida Sete de Setembro, no Edifício Verônica, Mercês.
5. São retalhos de minha insignificante biografia que sei não interesserão a ninguém. Mas a Rua da Faísca guarda inolvidáveis histórias que marcaram minha mocidade na Bahia. Por exemplo, o dia em que quase morri sob os escombros do casarão onde eu morava.
6. Foi assim. A Faísca é, desde sempre, uma rua movimentadíssima. Por ela circulam dezenas de ônibus e centenas de carros, em qualquer hora do dia e da noite.
7. Numa dessas noites, acordamos, eu e o meu vizinho de quarto, o hoje consagrado ator da TVGlobo, Othon Bastos, com parte do focinho de um ônibus dentro da sala de visitas do nosso casarão. Nos salvamos porque morávamos no pavimento superior da pensão de dona Mariêta, que alugava cômodos a estudantes universitários. Foi um tremendo susto!
8. Na Faísca, fiz uma comovente amizade com um cachorrinho vira-lata. Todas as noite, no mesmo horário, às 22 horas, ele chegava grunindo na porta de minha pensão. Eu lhe dava uma merenda. Ele comia com sofreguidão, e balançando o rabinho, naquele trote canino, sumia na primeira esquina. Contei a nossa história em outra crônica.
9. Foi também na Faísca que conheci Ana Luiza, de triste e bela história. Ela tinha 22 anos e 1.60 de altura. Tez morena; lábios suplicantes; seios fártos e túrgidos. Pernas e coxas lisinhas. Me foi dado conferir em memoráveis noites de escondidos "encontros"...
10. Um dia, Ana Luiza desapareceu da Faísca, ou mais precisamente, da casa, próxima à minha, onde trabalhava como babá. Com desvelo, cuidava do pequeno Leonardo, filho de um casal carioca que batalhava o dia todo.
11. Minha primeira indagação ao sentir sua falta: teria ela voltado para Aracaju, sua cidade natal? Eu sabia que esse era o seu desejo. Contava-me que seus pais viviam, permanentemente, de olho na estrada aguardando, ansiosos, o regresso da "filha fujona"...
12. Pois é. Nesse meu retorno à Faísca, encontrei Ana Luiza - coisas da vida! Como era de se esperar, volvidos tantos anos, estávamos, os dois, agrisalhados... Mas ela continuava bonita... Mais? Não sei...
13. Em poucas palavras, ensopadas de lágrimas, ela me contou a sua vida. Da Faísca, levada por uma cafetina esperta, foi parar num bordéu de Salvador, onde "morou" durante dez anos. Nesse grã-fino lupanar, um fazendeiro generoso dela se apaixonou; a retirou, imediatamente, do puteiro, e lhe deu "um trono de rainha".
14. Viveu com o bom fazendeiro de cacau (80 arroubas) durante décadas. Com ele, teve duas filhas: Heloisa e Helena. O cancer matou seu marido, que lhe deixou robusta e régia herança.
15. Fechando nosso papo, ela me disse: "Veja, meu amigo, como os deuses foram bons comigo: de puta virei rainha..."
Fiquei comovido com sua história. Até solucei, com cuidado para que ninguém ouvisse meu tímido pranto... Nem ela.
16. Despedindo-se de mim, ela me deu um terno e demorado abraço; senti a mesma doçura daqueles abraços d'outrora! De repente, descobrimos que estávamos conversando em frente à casa onde nos conhecemos e nos "encontramos"... na Faísca.
que virou rainha
1. Fui à Rua da Faísca, no centro de Salvador, e lá dei de cara com Ana Luiza. Fazia décadas que não nos víamos. Continua linda!
2. Falemos primeiro sobre a Rua da Faísca, onde morei um longo tempo e dela tenho saudades. Segundo me foi dito, a Faísca mudou de nome, mais uma vez.
3. Quando lá fui morar, início de 1960, deram-lhe o nome de Rua Senador Costa Pinto. Agora, prolongamento da Rua Carlos Gomes (1836-1896), o nome do respeitado político baiano Costa Pinto foi substituído pelo do compositor de "O Guarani". Continuarei, porém, chamando-a de Faísca. Me perdoem.
4. Minha passagem pela Faísca, como disse, foi longa e saudável. De lá saí para casar na encantadora igreja de São Francisco de Assis, no Terreiro de Jesus, Centro Histórico da capital baiana. E fui morar com Ivone na famosa Avenida Sete de Setembro, no Edifício Verônica, Mercês.
5. São retalhos de minha insignificante biografia que sei não interesserão a ninguém. Mas a Rua da Faísca guarda inolvidáveis histórias que marcaram minha mocidade na Bahia. Por exemplo, o dia em que quase morri sob os escombros do casarão onde eu morava.
6. Foi assim. A Faísca é, desde sempre, uma rua movimentadíssima. Por ela circulam dezenas de ônibus e centenas de carros, em qualquer hora do dia e da noite.
7. Numa dessas noites, acordamos, eu e o meu vizinho de quarto, o hoje consagrado ator da TVGlobo, Othon Bastos, com parte do focinho de um ônibus dentro da sala de visitas do nosso casarão. Nos salvamos porque morávamos no pavimento superior da pensão de dona Mariêta, que alugava cômodos a estudantes universitários. Foi um tremendo susto!
8. Na Faísca, fiz uma comovente amizade com um cachorrinho vira-lata. Todas as noite, no mesmo horário, às 22 horas, ele chegava grunindo na porta de minha pensão. Eu lhe dava uma merenda. Ele comia com sofreguidão, e balançando o rabinho, naquele trote canino, sumia na primeira esquina. Contei a nossa história em outra crônica.
9. Foi também na Faísca que conheci Ana Luiza, de triste e bela história. Ela tinha 22 anos e 1.60 de altura. Tez morena; lábios suplicantes; seios fártos e túrgidos. Pernas e coxas lisinhas. Me foi dado conferir em memoráveis noites de escondidos "encontros"...
10. Um dia, Ana Luiza desapareceu da Faísca, ou mais precisamente, da casa, próxima à minha, onde trabalhava como babá. Com desvelo, cuidava do pequeno Leonardo, filho de um casal carioca que batalhava o dia todo.
11. Minha primeira indagação ao sentir sua falta: teria ela voltado para Aracaju, sua cidade natal? Eu sabia que esse era o seu desejo. Contava-me que seus pais viviam, permanentemente, de olho na estrada aguardando, ansiosos, o regresso da "filha fujona"...
12. Pois é. Nesse meu retorno à Faísca, encontrei Ana Luiza - coisas da vida! Como era de se esperar, volvidos tantos anos, estávamos, os dois, agrisalhados... Mas ela continuava bonita... Mais? Não sei...
13. Em poucas palavras, ensopadas de lágrimas, ela me contou a sua vida. Da Faísca, levada por uma cafetina esperta, foi parar num bordéu de Salvador, onde "morou" durante dez anos. Nesse grã-fino lupanar, um fazendeiro generoso dela se apaixonou; a retirou, imediatamente, do puteiro, e lhe deu "um trono de rainha".
14. Viveu com o bom fazendeiro de cacau (80 arroubas) durante décadas. Com ele, teve duas filhas: Heloisa e Helena. O cancer matou seu marido, que lhe deixou robusta e régia herança.
15. Fechando nosso papo, ela me disse: "Veja, meu amigo, como os deuses foram bons comigo: de puta virei rainha..."
Fiquei comovido com sua história. Até solucei, com cuidado para que ninguém ouvisse meu tímido pranto... Nem ela.
16. Despedindo-se de mim, ela me deu um terno e demorado abraço; senti a mesma doçura daqueles abraços d'outrora! De repente, descobrimos que estávamos conversando em frente à casa onde nos conhecemos e nos "encontramos"... na Faísca.