O Homem (parte 5)

O homem caminhava no silêncio e no escuro denso daquela casa mobilhada, apenas, por lembranças, ocupada por vazios. Ele gostava da quietude, do exílio provocado e dos ruídos distantes de uma vida sendo vivida. Ele tinha necessidade de caminhar por suas ruas escurecidas, insalubres e caladas. Passar por suas esquinas insidiosas, perversas. Revisitar suas velhas moradas de fachadas ainda mais deterioradas. Eram suas ruínas, restos de alguma coisa inteira, límpida e primorosa na tela das suas lembranças.

A lembrança é tudo o que se pode ter. E sabendo da sua natureza incorpórea, abstrata e etérea, sabe-se que nada tem. Viver é não ter, o resto não passa de uma ilusão efêmera. E o que é a ilusão senão a sensação de ter para logo depois perder? E perdendo, descobre-se que continuar vivo é atravessar a planície à beira do rio escasso, paupérie e esvaziado. Quem vive, vive em falta perene.

Se o homem vive é porque inexiste. E seria, nesse caso, a inexistência uma porção, um quinhão da ilusão?

Confusão à parte, aquele homem sabia do seu deserto. Fazia dele o seu caminho árido, ressequido e miserável. Tal qual um bicho agreste e nômade, seguia veredas quentes na absoluta insciência das coisas que estão por vir.

Àquela altura a vida do crepúsculo já agonizava, anunciando o anoitecer solitário. E o silêncio era tanto que só podia ouvir os pingos da velha torneira. Ele nunca lembrava de trocá-la. Não lembrava de muita coisa...

O tic, tac do relógio cantava a melodia do severo tempo. Tempo servo dessas horas escuras. Não sabia qual barulho era mais inconveniente: se a velha torneira ou o antigo relógio na parede descascada. Não sabia o que era pior: a solidão ou o engano da presença.

A casa dormia. A rua dormia. Todos pareciam dormir nos braços da madrugada. Hermética. Misteriosa noite dos ventos parados. Noite ressoada em um canto temível e dança consternada. Quando criança ele não gostava da noite. Ela tinha sua face sempre escondida pelo véu negro que pouco dizia. Era inexpressiva. Preferia o dia. Que quase sempre o confundia.

A música... vinda, sabe-se lá de onde, rompia a mudez das horas. E ela era tão linda. O homem mergulhava fundo nas águas profundas e claras. Mas, águas profundas são escuras. Não são? E quanto mais adentrava o seu interior, via-se pintado de um escuro-sombrio. Tantos cantos sedentos esperavam por luz, assim como o enlutar ambicionava a claridade singela das estrelas.

Os pingos d’água eram, agora, uma poça serpenteando o chão do lugar. Era tanto entra-e-sai que o que era água, passou a ser lama. Se o homem pensava ter encontrado a perfeição... saberia, um dia, que a perfeição é uma ilusão que não veste e nem aquece nenhum vivente.

A perfeição é um engano e não há razão para sobressalto.

Toni DeSouza
Enviado por Toni DeSouza em 16/09/2018
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