Um casal exemplar que deixou de se amar

São casados há 26 anos. As mazelas do cotidiano fez com que fossem se desconhecendo dia após dia, colocando cada coração léguas distantes do outro. Desgastes que foram se embrenhando pela pele, pelos ossos, pelos rincões mais obtusos da alma. Carinho básico, nada. Nem isso fazia parte do cardápio que o casal poderia usufruir dormindo na mesma cama toda noite. Nem brigavam mais. Quando quebravam o pau, tinham pelo menos o consolo da reconciliação, curativo que até servia como tempero para retomarem carícias, outrora até fogosas, descaradas, safadas, estreando na intimidade que, vez por outra, fazia valer suas afiadas e tentadoras garras. Talvez esperem a morte do outro para encerrarem esse folhetim bucólico e insosso. Mas até a morte fugia deles, como se não os quisesse poupar do desprazer diário de uma convivência falida, cumprindo uma prorrogação insana. Talvez estivessem usufruindo de uma tal zona de conforto, à qual se agarravam numa desesperada tentativa de não interromper uma caminhada que, outrora revigoradora, agora jazia empacada e sem qualquer sopro de vida. Dois seres empurrando com a barriga seus epitáfios, envelhecendo sem o direito das benesses que um matrimônio gostoso e sadio poderia proporcionar. Talvez, vai saber, se amem assim. Pode ter sido o jeito em que se atracaram para perpetuar uma relação que já teve seus dias de glória, raros, mas que fizeram valer seus encantos, raros também. Nem tudo segue protocolos do "certo" e "errado", têm coisas que só funcionam com determinadas engrenagens que, vistas com olhos distantes, se mostram bizarras e atrozes. Mas o amor tem traduções mil. Pode ser que eles se amem assim, mais do que quaisquer outras criaturas que já pisaram nesse chão. Pode ser que, desse jeito, estejam nutrindo uma paixão com tal envergadura que a cabeça do homem se diz incapaz de traduzir. Pode ser, até, que tudo isso não passe de uma armadura espessa para acobertar um manancial de amor que Deus não seria capaz de entender e nem, tampouco, replicar. O amor tem vestes que nem sempre conseguimos tocar, sentir, aspirar. Pode ser que seja isso que acontece com esse casal que, há 26 anos, estão juntos. Talvez mais juntos do que nunca. Talvez mais distantes do que nunca. Vai saber.

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 13/09/2018
Reeditado em 28/09/2018
Código do texto: T6447607
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