O cearense de são luís
A literatura não delimita tempo, nem fronteiras, por isso é possível transitar entre ontem, hoje, amanhã e pertencer a quaisquer e todos os lugares. Se assim não fosse, como falar de um maranhense que, além de eternizar as coisas do sertão, carrega em seu nome o adjetivo que o naturaliza em uma terra a qual ele não pertence, mas usou dela algumas de suas tintas poéticas para colorir boa parte de sua obra?
Catulo da Paixão Cearense, como artista, não lutou muito por reconhecimento pessoal e profissional, mas as questões sociais da virada do século XIX para o XX, no cenário carioca, ensejavam alguns questionamentos: o que é ser artista? O que define a arte popular? O que era identidade nacional? O que era ser moderno? Para o bem da verdade artística, a obra dele é eivada de “sertanismos” contestando boa parte da produção crítica de intelectuais de seu tempo, como por exemplo, Monteiro Lobato que a ele desferiu críticas.
A linguagem de Catulo, melhor dizendo, a linguagem dos sertanejos da qual o poeta se faz porta voz, destoava daquela dos parnasos e fustigava os intelectuais coetâneos seus. Alguns, ora concordavam, elogiando o poeta-cantador, outros, porém, se irritavam com ele e chamavam-no de violeiro plagiador. Entretanto, o eu lírico em seus canto-canções-poemas brinca com a linguagem, demonstrando a capacidade que o poeta tem, quando dá voz aos cantares puros, sábios e melodiosos dos caboclos do sertão, essencialmente, o cearense.
Em Maranguape (Ceará), onde a sua família se fixaria ao sair de São Luís, “as impressões que o menino Catulo colhe no convívio com a gente sertaneja marcarão profundamente sua personalidade, inspirando-lhe, no futuro, transformar em poesia e música os costumes, a gente, o folclore, a fauna e a flora do sertão, para sempre impregnados em sua alma” (LISBOA JÚNIOR, 2016: 39). Para Guimarães Rosa, “o sertão é o mundo”, então Catulo da Paixão Cearense (dizem alguns, em parceria com João Pernambuco) cantou para o mundo o luar e as coisas do sertão: “Coisa mais bela neste mundo não existe/ Do que ouvir um galo triste que no sertão se faz luar/Parece até que a alma da lua é que descanta/, Escondida na garganta desse galo a soluçar!”.
Eis que esta canção, hoje, acende em minha memória um esplêndido fio de luz. Trago de lá as lembranças mais doces de quando ainda muito pequena, ouvindo o violão que meu pai tocava... (ele não cantava) Aquela canção enchia, não só os meus ouvidos de lindas e iluminadas melodias, mas os ouvidos do alpendre e os terreiros do Barreiro Grande. Lá o vento circulava suavemente, entrando pela varanda e adentrando os corredores da nossa casa, transportando os melodiosos sons saídos das cordas do violão... Como eu amava ouvir, embora ainda não soubesse avaliar a importância do poeta do sertão e nem tão pouco a sua obra! Mas eu me importava com o cair da tarde, quando eu esperava ansiosa pelo meu pai que chegava da lida e, após um banho pegava o seu violão.
Um pouco mais tarde, na escola da cidade, a professora de Educação Artística, do Educandário Nossa Senhora de Fátima, em Missão Velha (Ceará), nos apresentava a letra e pedia que traduzíssemos, em pinturas, em desenhos ou em recortes e colagens, aquela canção, na ocasião, lindamente cantada por ela! Os meus ouvidos se deliciaram em ouvi-la, porque já a conhecia de há um bom tempo.
Lembro-me de ter desenhado uma paisagem com uma casa branca e iluminada pela noite estrelada, cuja lua enchia de brilho e orgulho a meninada das minhas noites de lua cheia. Aquela era a Casa Grande, onde eu vivera a minha primeira infância. Sem falsa modéstia, meu desenho foi muito elogiado e exposto no mural da escola como um dos melhores trabalhos da disciplina.
Essa experiência, talvez, tenha despertado em mim certa queda pelo desenho e pela pintura ensaiados, enquanto o magistério e a família não tomaram conta de mim e do meu tempo. Hoje, lendo alguns dos poemas desse cearense de São Luís, me vêm à mente como em ondas suaves, essas recordações, lembranças daqueles dourados anos, prateados que eram por aquele luar, verdadeiramente o luar do sertão.
Após algum tempo, me pego a cantar com Catulo da Paixão de São Luís: “Não há, oh gente, oh! não, luar como esse do sertão! Oh! que saudade do luar da minha terra/Lá na terra branquejando folhas secas pelo chão/Este luar cá da cidade tão escuro/Não tem aquela saudade do luar lá do sertão”.
Camila Nascimento.
São Luís, 2016.