O destino de uma personagem

Nós costumamos nos apegar a muitos personagens quase como se fossem nossos pais, irmãos ou filhos. Eu me sinto dessa forma em relação a uma personagem que criei, cujo perfil eu idealizei por muito tempo antes de começar a colocá-la no papel. Eu queria criar uma personagem cega de nascença e torná-la protagonista de um conto de terror e, para tornar a história mais interessante, fiz com que seu cão-guia fosse um pastor alemão pois, embora o mais comum na atualidade seja os cães-guia serem da raça labrador, lembrei que esta última raça não possui agressividade e, no caso de um potencial perigo, um cão da raça pastor alemão, ainda que tenha um comportamento manso, irá se tornar agressivo para defender seu dono.

Uma vez, assistindo a um documentário, vi uma moça cega que morava sozinha com um cão da raça Yorkshire e pensei: "Ótimo, não será inverossímil uma pessoa cega morando sozinha e isso será até uma chance de mostrar aos leitores que cegos não são coitados incapazes."Como eu mesma já mencionei, escritores não precisam levantar bandeiras, mas o que escrevemos pode mostrar o que pensamos.

Assim, terminei de criar o perfil de minha personagem, a quem batizei de Débora. E a visualizei assim: Débora é uma moça cega de nascença, com cerca de vinte e poucos anos, que mora sozinha com seu cão-guia Ariel, pois sua mãe morreu e seu pai a abandonou por ter nascido cega. Ela ensina música no próprio Instituto em que estudou."

O enredo do conto é assim: alguém está matando os cães e gatos da vizinhança e o cão-guia da Débora, normalmente manso, age de forma hostil com um dos moradores da rua, o qual desconfia do cão e da própria Débora, que diz que há coisas que não passam despercebidas nem mesmo para os cegos. No final, o tal morador, que tem preconceito contra Débora por ser cega, tenta até agredi-la e o cão a defende, mordendo-o. Depois, descobre-se que ele andava matando os animais.

E a história termina com Débora e sua vizinha, uma senhora idosa chamada Gertrude, conversando sobre os acontecimentos.

Porém, mãe, que costumava ser minha primeira leitora, começou a me atormentar. Ela disse que não fazia sentido botar uma pessoa cega morando sozinha e que era maldade da minha parte. Eu nunca entendi por que mãe se incomodava tanto com uma personagem fictícia. Ela chegou a pedir muito que eu criasse um irmão ou tio morando com ela.

Eu falei algo assim:

-Mas mãe, se eu botar um irmão ou tio vivendo com ela, vou ter que mudar muita coisa, até porque há uma cena na qual Débora peito o homem por ele achar que uma cega não pode viver sozinha. Depois, a mãe morreu e o pai a abandonou. E cegos vivem bem sozinhos. Botei que ela mora sozinha para mostrar aos leitores que cegos não são incapazes.

Mãe não se convenceu e disse que uma moça, principalmente cega, seria alvo de pessoas que quisessem lhe fazer mal. Eu argumentei que ela tinha o cachorro e ela disse:

-Mas ele não é uma pessoa, não é uma companhia adequada.

Para satisfazer a mãe, fiz que ela tinha uma irmã mais velha, o que não satisfez mãe, que achava que ela precisava de um irmão para protegê-la.

Depois, conversei com pessoas cegas que conheço na vida real e elas se revoltaram, dizendo que eu perdera uma boa chance de mostrar que cegos podem muito bem ser independentes. Eu respondi:

-Isso já não pode ser desfeito. Que fazer?

Hoje, penso que mãe talvez tenha se apegado à personagem e pensado no que poderia ser dela se fosse real:sozinha e cega num mundo hostil. E como a opinião dela acabou influindo no destino de uma personagem. Sinceramente, arrependo-me um pouco de ter cedido mas, como eu já falei, isso não pode ser desfeito.