Essência

Ainda madrugada e elas já estão me enchendo a cabeça. Vêm sem pedir licença, nem sentam, ficam rodando, se articulando. Ah! Minhas amadas. Desde muito pequena já brincava com vocês. Pegava o caderninho que ganhei de mainha e ficava escrevendo sílabas, invertendo as posições, formando novas. Criando. Era isso que eu pensava fazer, criava palavras. Nossa! Quantas eu conhecia... contar? Eram muitas. Elas me pertenciam e já me revelavam. Eu tinha que fazer letras. Gostava delas e as desenhava. Nunca me dei aos números, até hoje me esquivo, não quero escrevê-los. Escrever acho que só combina com letras, numerar deveria ser para eles.

Por todas as fases passei. Tive letras feias, desajeitadas, tidas como mal feitas, hoje, as faço de tudo quanto é jeito, há quem diga que muda de acordo com o humor. Ah, mas se naquela época a professora soubesse do espaço que as letrinhas ocupavam dentro de mim, eu nem teria trancado seu dedo na porta e nem teria ficado do lado de fora da sala, já de autocastigo esperando Silene chegar pra me buscar. E se desde aquela sala já estivessem dado valor as entrelinhas que eu escrevia, hoje eu não fugiria do ofício de dar aulas só pra me refugiar em palavras. Versos e prosas já se acumulariam mesmo que a maneira infantil.

Se estou culpando alguém? Não, não. Longe disso. As culpas da mediocridade dessa vida não se encaixam nessa brincadeira fascinante. As palavras me vem tão naturalmente quanto o ar ou a vontade de inalar Vick quando ele me falta. Vício herdado de convivência familiar. Os antigos enfiavam a pena no tinteiro e desenhavam caligrafias, eu inspiro aquela composição a base de mentol e cânfora e pronto, narinas livres, palavras fluindo. Cada um na sua mania.

Entre vícios e crimes de uma amante vocabular, não cabe mesmo julgamento, nem acusação, nem defesa. Só tem réu. E não é que um dia, em meio a faxina e, seleção de livros pra viagem, que nem quero me deter no destino ou na razão, eu sem intenção joguei fora uma agendinha em que tinha sentimentais coisas?! Jogar palavras no lixo é pior que jogá-las ao vento. Não tem retorno em hipótese nenhuma , só lembranças. Taí, talvez o meu pior ato infracional comigo mesma.

Mas vamos lá, há palavras que pedem perdão e se perdoam. Inclusive que se acusam e acusam. Lembram e são lembradas. A fluência verbal numa mente que ama sentir, pensar e expressar, sentar e escrever parece algo mais difícil que inspirar-se. Parece um tanto desafiador, onde posso ficar e degustar o sabor das palavras circulando em mim? Que horas vou acalmar e deitá-las em um papel? Um dia quase todo se passa, entre fugas e folgas respiro aliviada e antes que chegue outra madrugada termino meu texto.

Escrito em 03/09/18

Ionara Lima
Enviado por Ionara Lima em 10/09/2018
Código do texto: T6444713
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