CONVERSA FIADA
Sob a iluminação de um poste de luz na esquina da calçada em frente a padaria, Antônio, se apoiou no poste. Sua vista alcançava o copeiro e a patota de meia idade lá dentro sentada nas cadeiras conversando e dando uma olhadela em qualquer coisa na tevê. As cadeiras e mesas do lado de fora eram retiradas pelos empregados e os toldos estavam sendo recolhidos.
"Estou cansado."
"Cansado de quê?"
"Responsabilidades."
Apesar da importância de ajudar no pagamento do aluguel, ter o que mastigar no almoço e janta e ter água quente, Antônio detestava trabalhar. Ficava a semana inteira esperando pelo dia de folga onde pudesse ficar no quarto sem fazer nada. Preferiria ter tido uma vida simples no campo, cultivando seu próprio alimento, permutando variadas frutas com um marceneiro por uma cama. Daniel ouviu como foram suas experiências no consultório do convênio médico onde ia pelo menos uma vez por semana, dando preferência às sextas.
"Nas primeiras vezes ficava preocupado em simular. Fingia uma dor nas costas, conjuntivite. Depois o doutor sacou a minha. Acabou sendo melhor porque nas vezes seguintes eu simplesmente chegava e pedia o de sempre. Afinal, eles precisam trabalhar", num tom irônico.
Ambos concordaram que trabalhar era um saco mas necessário: "Os frutos das misérias sociais provém da paixão pelo trabalho", acrescentou o rapaz cansado.
"Soube do que aconteceu com Elena?"
"Não. Faz tempo que não a vejo."
"Foi demitida."
"Por quê?"
"Disse que foi pega pela encarregada chupando o pau de um cara no banheiro feminino durante o horário de almoço."
O ouvinte da vez lembrou-se do semblante inocente da garota e esboçou um sorriso.
"Por um momento me peguei pensando numa empresa solicitando uma recomendação dela." Daniel colocou-se a imitar um almofadinha, desses que lambem saco e enchem a boca de pêlos: "Oh! essa funcionária desempenhou um serviço de muito comprometimento à nossa equipe com uma única ressalva ao fato da mesma obter uma conduta explicitamente libidinosa num episódio específico nas dependências da empresa", e derramou uma dose de vinho na garganta.
"Deu seu sangue e sua vitalidade pra parasitas anos a fio e tudo isso foi apagado. Só porque fez a felicidade de um plebeu."
"O mais difícil disso tudo foi contar aos pais o motivo da demissão. A mãe deu-lhe uma surra com a benção do pai. A coitada está com manchas roxas pelo corpo."
Desencostou do poste. Certo dia Elena e Antônio conversavam sobre qualquer coisa até que ela o confiou algo. Elena disse que o pai ofereceu uma quantia em grana pra uma de suas amigas sair com ele uma noite. Pelos detalhes da garota ele achou que o dinheiro gasto valera a pena. Perguntou o motivo dela não ter aberto o jogo pra mãe e, segundo ela, a mãe já sofria demais com a depressão. Quando questionada sobre a garota que saíra com seu pai Elena dissera que cortou relações pois a partir dali a julgava 'uma cadela desperada por dinheiro', a despeito das prostitutas que em seu ponto de vista eram mulheres fortes e dignas.
Antônio adorava sua memória sobre Elena. Seu temperamento impulsivo por vezes desencadeava situações intrépidas. Pensou em seu corpo roxeado pelas pancadas. O cabelo curto ondulado e as coxas finas fustigavam suas ideias e desejos que fazia-o sucumbir aos impulsos. Desejava casar-se com ela e ter uma porção de pivetinhos longe da cidade, mas sentia não ter coragem o suficiente pra tal responsabilidade. Ao mesmo tempo entrava em contradição consigo pois não acreditava no poder de propriedade sobre a alma e o corpo humano.
"De que vale a lealdade se as pessoas se esquecem do que você já fez?", Antônio perguntou.
"Serve pra termos princípios, porra! Você tem que assumir seu papel na sociedade!", indignado.
"Papel pra quê? Pra quem?!"
"Pra si próprio em primeiro lugar. Você tem que ser uma pessoa ativa, contribuir de alguma forma."
Um grupo de jovens não habituados com aquelas ruas aproximou-se perguntando onde se localizava a estação de trem. Uma garota do grupo não parava de olhar Daniel, como se estivesse encantada com suas palavras incisivas sobre o papel dos cidadãos. Antônio explicou metodicamente o caminho ao aparente líder enquanto uma linha reta entre esses dois olhares só fora interrompida com a partida do grupo.
"Então, penso que devemos contribuir com algo", relembrou.
"Acho que sirvo pra procriar."
"É uma parte importante."
"Jogar alguém no mundo pra enchê-lo de ilusões ideológicas e fraternais não me parece a coisa certa."
"Você não abraça ideologias?"
"Pelo contrário. Penso de tal forma a partir de ideologias que fragmentei daqui e dali. Conheço um cara tão atolado no que pensa que se isola de novas ideias."
"E qual o problema?"
"O problema é que muitos acabam precisando de um bastão de Hoover.", Antônio, agora com a garrafa em mãos, deu um corte: "Se você levantar um questionamento sobre alguma coisa acabará sendo julgado como traidor. Se disser que está de acordo com apenas noventa e nove por cento dirão que não tem paixão naquilo que acredita. Ninguém se inclina a arriscar pensar de forma mais progressiva que seus 'gurus intelectuais.' Parece até que são submissos da mesma forma que são os que acreditam em algo divino."
"Você se acha o espertalhão, não é?! Sem esses 'gurus intelectuais' você não diria nada disso. Provavelmente estaria em casa rolando a barra do seu Facebook ou fazendo qualquer banalidade esperando ansiosamente pelo fim de semana. De tanto esperar por isso acaba se esquecendo de viver. Uma vida inteira de sucessão de esperas pelo fim de semana, semana após semana, se é que já não faz.", Daniel riu e acendeu um cigarro que balançava na medida em que os lábios se mexiam: "Temos que ter alguém ou algum conceito a se espelhar em qualquer tema da vida antes de mais nada", concluiu.
Começava a esfriar.
"O ponto não é esse", entregando a garrafa ao amigo.
"Conversa fiada. Você diz isso porque não tem ninguém e nada pra amar", batendo as cinzas pro chão.