Assim ou ... nem tanto. 151
Evocação
Todos os amores que tive são agora memórias. Há memórias de cores, ares, cheiros e emoções. Recordo-te e choro. Não sei se de saudades de ti ou do tempo a que pertencíamos. Éramos ambos jovens. Ser jovem também é valorizar utopias e as nossas, entre um encaixar de dedos e o beber a imagem do outro como elixir de maravilha, eram quase sempre passeios por onde ninguém antes andou. As coisas, disse o sábio, nascem só quando as vemos embora muitas morram sem que as tenhamos visto. Quando as cores começaram a desvanecer, a vida a doer, o trabalho a pesar no corpo mal saído da perfeição inútil, já não nos bebíamos com devoção, nem nos sabíamos como antes, apenas pelo lado doce das silabas dos nomes. Passei a gritar o teu e, quando se gritam, os nomes ficam urgentes, espinhosos, desesperadamente outros. Depois arrependia-me, amansava as silabas, passeava os dedos na tua pele, voltava a sentir que o barco que eu era jamais deixaria o cais de abrigo em que te tornaste. A seguir já não havia barco nem cais ou gente. Deixámos de ver as coisas de antes e sentíamos só o lado agreste de viver, a ferocidade, o horror que é olhar uma maravilha e senti-la como o abismo que, no fim da queda, nos esborracha. Separamos os nossos caminhos e quando já nenhum de nós se via, quando todos os agravos se tornaram neblina, reconstrui-te, guardei-te, tenho-te em mim. O som do teu nome voltou a ser o murmúrio do rio a viver as pedras mas tu já não estás. Depois de ti vieram outros amores. Todos diferentes, todos intensos, todos a tornarem diferente um mundo que, afinal, era comum.