Densos Líquidos
Verão de 2007, a cidade de São Paulo está um calor de dar inveja a qualquer deserto.
São 7:15 da manhã e eu, motoboy, termino de aprontar a marmita - que varia do arroz a um ovo mexido, do feijão a três rodelas de tomate, comprado no finalzinho da feira de ontem, quarta-feira, no Jd. Celeste - dou um beijo em cada um dos filhos, peço a "bença" a meus pais e vou. Já na rua, ouço: "vai com Deus, meu filho". É a Dona Neide, vizinha que me pegou no colo. E com Ele vou, pois sem Ele, sei não se estaria vivo depois de tudo que já passei sendo marginalizado nas marginais do Pinheiros e do Tietê.
Dia comum, entrega no centro, retirada no Jabaquara (pertinho da quadra da Barroca Zona Sul) para entregar em Perdizes. As horas passam, as costas doem, a cara fica suja.
Um acidente na Rebouças. Já passa do meio dia. Mais um irmão no chão, sangrando. O líquido vermelho que escorre do corte na perna direita se mistura e contrasta com o branco da faixa contínua, bem de esquina com a Oscar Freire. As madames seguem rumo às compras, indiferentes. Meu coração se perturba. Ele, o acidentado, me olha com o olhar de dor, sofrido por dentro do capacete. A viseira é transparente. Paro a moto, pois o farol fechou. Olho para ele novamente, mas ele não está mais me olhando. Merda! O telefone toca. "Já tá chegando no cliente"? Pergunta o patrão. Preciso terminar esse serviço. Do vermelho (a mesma cor do líquido que escorre da perna daquele ser humano desumanizado que está no chão) ao verde do semáforo, passa-se menos de um minuto. Eu engato a primeira marcha e, com languidez, sigo em frente.
Entrego, retiro...15:50. Nossa! O dia passa que a gente nem vê.
Agora estou no comecinho da rua da Consolação, em frente à praça Roosevelt. O farol fecha. Para um motoboy ao meu lado. Olho para ele, penetrando a viseira (igual mais cedo com aquele que estava a sangrar), mas nos olhos desse, o que está a meu lado, vejo outro líquido. Aquele que é descrito pelo poeta da zona sul: "clara e salgada".
Não é da minha conta. Ou é. Acho que é, sim!
Pergunto se está tudo certo, se posso ajudar, se ele quer parar em algum lugar e conversar um pouco. Lembro que tenho cinco conto na carteira e posso lhe pagar um suco.
Ele me olha, o farol abre, ele pede para eu encostar no posto de gasolina do lado esquerdo (aquele na esquina da Consolação com a rua Araújo). Faço isso. Ele para ao meu lado. Levanta o capacete, mas não chega a tirá-lo. Tem mais de quarenta, menos de cinquenta anos. As mãos e o rosto estão castigados pelo sol. Olha com seus olhos úmidos dentro dos meus olhos e diz:
"Obrigado, motoca. É que nóis que é homem, temos que ser super-homens em casa, no trabalho, na vida. E aqui, na minha solidão em meio à multidão, aproveito pra fazer o que não posso fazer na frente dos outros. Mas tá firmão. Agradeço pela preocupação. Irmão, não me leve a mal, mas tenho que ir. O cartório fecha às dezessete horas. Além disso, tenho mais quatro entregas. Fica com Deus e vê se sai dessa vida. Procura outro trampo. Nóis se vê por aí".
Buzina duas vezes e vai. Eu fico. Respiro. Reflito. Penso e, finalmente, vou.
Termino meus serviços e chego em casa. Encosto a moto e vou abrir o portão. "Oi, meu filho". Diz a Dona Neide de maneira afetuosa. "Ela já me pegou no colo", penso eu com gratidão. Sorrio sem mostrar os dentes.
Entro, tomo um café com a minha mãe e vou tomar um banho. Ali, percebo que aquele tal líquido claro e salgado sai dos meus olhos para se misturar com as águas do chuveiro. Depois saio firme e forte, dou um beijo nas crianças, que já chegaram da escola, e vou para a laje contabilizar os frutos do dia: traumas, experiências e alguns trocados.