PROFESSOR CHICO E CORÉU

Nós, brasileiros, podemos colher exemplos claros da volatilidade de caráter nos acusadores, acusados e delatores nesse rebuliço sócio, político e econômico implantado pela famigerada lava jato. Achei criativo o nome “Moro” atribuído ao lava jato de Plínio na Pituba, em Salvador/BA. Pois é. Popularizaram-se tanto os nomes lava jato e de seu juiz-lavador que os postos de lavagem de automóvel já andam usando o termo “lava jato mesmo” para não ter seus estabelecimentos confundidos com os ambientes soturnos do judiciário brasileiro.

Esse triste aranzel de mentiras, traições, vingança e pistolagem jurídica remete-me ao início da década de sessenta, tempos em que compartilhava com meu irmão Romulo, por sua generosidade, um apartamento na Rua Gomes Carneiro, em Ipanema, Rio/RJ. Ocupávamos o 307. Na outra extremidade do corredor, no 301, habitava o inesquecível amigo, Rômulo Motta, síndico do prédio.

Por um período de meses contamos com a agradável companhia do professor Chico (Francisco Motta), primo de Rômulo Motta, cearense de nascimento, hábitos e sotaque. Lecionava Latim e Português no Colégio Nossa Senhora da Paz. À noite e nos fins de semana conseguíamos algum tempo para divertida prosa. Não escondia seu esquerdismo amador, mas, fazia pilhéria das organizações esquerdistas radicais e de seus métodos de cooptação, ação e sigilo. Diga-se, o prof. Chico fazia piada de tudo.

Aos domingos de sol, reuníamos amigos para o papo na areia de Ipanema. Na saída da praia, era costume uma pausa para refresco, cerveja e aperitivo num bar plantado na esquina de nossa rua com a Avenida Vieira Souto (a da praia).

Dessa turma domingueira, vale a pena lembrar de Hélio, apelidado Coréu, por ser de Coreaú/CE. Igualmente cearense, brincalhão, com diálogos inocentes, sempre sorrindo, ostentava sem favor o título de gente boa por sua agradável convivência. Operário sofrido, trabalhava à noite numa fábrica de tecidos na zona norte, recebendo salário mínimo que mal dava para transporte e alimentação. Rômulo Motta, seu primo distante, acolhia-o gratuitamente em sua morada.

Coréu era admirador escancarado do prof. Chico, desde suas anedotas até sua vasta cultura e fervorosa fé religiosa. Acompanhava-o nas missas de domingo à tardinha. Nas prosas, ouvia-o com extraordinária atenção, mirando-o fixamente, sem piscar, seus gestos faciais, olhar e movimentos labiais. Fazia-se mesureiro à menor manifestação do professor. Adiantava-se a servir-lhe no que desejasse. Até no bar antecipava-se ao garçom para pegar um copo d’água ou algo a seu alcance. Coréu, do tipo puro, não se acanhava em declarar desejo de ter a cultura e a facilidade verbal do prof. Chico.

Apesar de grato com os encômios, lisonja, subserviência e chaleirismo de Coréu, prof. Chico sentia-se desconfortável com o possível ar de humilhação que se poderia interpretar de sua relação com o amigo.

Certo domingo, no regresso da praia, éramos seis ladeando a mesma mesa do bar, quando prof. Chico achou um jeito de amenizar aquela – muitas vezes – zelosa, mas cansativa, admiração de Coréu. Combinando sua inata habilidade humorística com a imposição de falsa – mas convincente - seriedade, voltou-se para o amigo, mirou-lhe nos olhos e falou:

- Amigo, sei que você me respeita e admira. Por isso, vou lhe revelar um segredo que confio na sua lealdade para não o deixar escapar desta mesa.

- Pode falar, professor. Desta boca nada sairá!

Declarou Coréu, beijando seus dedos indicadores levado em cruz à boca. Em voz baixa, prof. Chico disparou:

- Pois saiba, sou líder de uma organização política revolucionária secreta, jamais identificada pela polícia. Há tempos estamos planejando a tomada do poder no Brasil. Começaremos por explodir cinemas, teatros, estações de trem e repartições públicas. Os governantes serão eliminados um por um sem saber por quê nem por quem. Reunimo-nos em lugares super secretos, onde são ministradas aulas de como manusear armas pesadas, fazer bombas potentes e coquetéis molotov. O inciante só chega lá de olhos vendados, para não saber o caminho. Para melhorar nossa amizade, convido você para integrar nosso grupo. Todos aqui desta mesa são membros, mas sabem camuflar direitinho essa situação.

Silenciosos sorrisos foram abafados por um discreto gesto do professor que continuou:

- Você terá que jurar fidelidade e resistência às adversidades. Ninguém pode se identificar membro da organização, nem revelar qualquer coisa sobre ela. Tampouco denunciar seus membros. Nada de delações, ainda que por atrativas somas de dinheiro ou favores. Silêncio absoluto é a regra básica. Mesmo sob degradante e dolorida tortura, nada se confessa. Esteja preparado! Em nossas reuniões, fazemos questão de treinar nossos membros a resistir às sessões de tortura que são normalmente usadas pela polícia. Por exemplo, suportar passivamente baldes de água gelada e urina na cabeça, beber líquidos com fel, porradas com cassetete de borracha, choques elétricos em várias partes do corpo e – a pior - que é ter seus testículos pressionados por alicate...

Nesse momento, Coréu franzindo a testa e fechando as pernas, como se sentisse dor, interrompeu o prof. Chico para indagar:

- Aperto dos ovos com alicate?

- Sim!

- Isso não professor. Negativo! Estou fora dessa organização. Volto para Coreaú.

Uma gargalhada geral. Prof. Chico abraçou Coréu, retomou a palavra para esclarecer:

- Não se preocupe, meu amigo, tudo isso foi brincadeira. Não pertenço a qualquer organização nem quero meus amigos – muito menos você - nesse tipo de empreitada. Continue a querer-me bem.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 01/09/2018
Código do texto: T6436302
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