SETENTA E QUATRO

Hoje eu completo setenta e quatro anos...

Quase três quartos de século. É muito tempo...

Idade que muitos não conseguem alcançar...

Acredito até que a maioria dos que nasceram no mesmo dia em que eu e também muitos dos que nasceram depois de mim já estejam mortos.

Muitos bons momentos preencheram esses anos, conheci muita gente, alguns superficialmente, outros com maior profundidade, mas em ambos os casos a roda do tempo afastou e também se encarregou de colocar outros para preencher as vagas deixadas.

Os tropeços, quase sempre, serviram de estímulo para novos passos, mas nunca com as devidas cautelas e o passar dos anos ajudaram-me a entender que a felicidade que muitos encaram como objetivo é, em verdade, saber aproveitar todos os momentos vivendo-os da melhor forma possível, sem estresse e sem as angústias do querer mais, e mais, e mais, porque como diz a sabedoria popular “a vasilha do ter nunca enche”.

Aquele velho que o espelho insiste em me mostrar diariamente não sou eu.

Posso garantir a vocês todos que apesar de ser muito parecido comigo, ele é bem mais velho do que eu, porque não dá para distinguir entre as suas rugas, a face daquela criança de outros tempos que continua viva dentro de mim, ávida por conhecimento, questionadora, incapaz de ficar satisfeita com as respostas “é um mistério”, “não sei”, “é assim mesmo” e que continua arranjando encrenca para nós dois devido à curiosidade e a língua solta de quem não leva desaforo para casa.

Os cegos raspam a barba usando apenas o tato, vou treinar e quando adquirir a prática necessária aquele velho chato do espelho que se dane, porque nunca mais vou olhar para a cara enferrujada dele.