A morte como espelho
               Fábio Costa
 
Os sinos da Matriz badalaram os repiques fúnebres. Os mais velhos sabiam do se tratava, os mais novos continuavam imersos em seus devaneios infindáveis. Aquela manhã de março amanheceu diferente e o velho Dino não estava mais entre nós.
As beatas bem vestidas e com cabeças baixas em sinal de respeito ou pura encenação, dirigiam apressadas para a porta da igreja local. Alguns amigos e fieis de Dino já se aglomeravam e especulavam a morte repentina e até mesmo, misteriosa daquele que era considerado o exemplo da comunidade.
Da sacada de balaústres da igreja, via-se Margarida subindo o morro a passos largos. Mostrando seu ar de cansaço e leve tristeza nos olhos ela trazia nas mãos as chaves para abrir as portas da Matriz. Este percurso era caminho da roça para a distinta, afinal eram quase 20 anos que aquelas chaves tinham chegado às suas mãos e mesmo com as trocas de padres, Margarida venceu a tudo e a todos e manteve seu posto de glória. Ela era a sacristã.
O Sr. Arlindo, homem franzino e muito discreto, comungava do respeito da comunidade. Sua palavra era palavra de honra. Pai de uma família numerosa foram seus antepassados que doaram terrenos e benesses para a construção do conjunto arquitetônico e religioso daquela comunidade. Naquela manhã cinzenta ele também estava ali junto aos demais. Mãos postas em sinal de oração, mexia com os lábios levando a entender que sua prece estava em plena execução.
A igreja refletia o silêncio da perda de Dino. Este mesmo silêncio só era quebrado por um suspiro mais profundo ou um choro menos comedido. Ele era um homem fenomenal. Valia a dor daquela comunidade que perdia um membro querido.
Não havia palavras, mas havia uma comunicação no ar. Algo estranho de se descrever, mas os olhares se entrecruzavam e neste movimento se comunicavam. Respondiam às dúvidas e criavam situações novas. O vazio deixado por Dino tinha que ser preenchido de algum modo e não havia outra maneira se não fosse pela especulação mental.
Lembro-me de minha avó santa, mas de língua afiada dizer: “Não se fala mal de padre”.  Acho que esta máxima perpassava a mente dos presentes. Pe. Dino não estava mais entre nós. Não usaria aquele microfone com maestria para encantar a todos. Não apresentaria o zelo pela liturgia com sua simplicidade e nem encheria aquele ambiente com a fumaça do incenso que saía plena do turíbulo prateado.
Dino não mais seria visto pelas ruas da cidade com seu sorriso largo. Os restaurantes e bares não receberiam mais a sua visita. As festas de famílias não contariam mais com sua alegria e os amigos mais próximos não poderiam rir de suas peripécias existenciais.
Sim, Dino era um ser humano. Era visto com outros olhos pela maioria, mas ali dentro pulsava um coração de carne. Os mais chegados costumavam dizer que ele se transformava quando estava na intimidade de poucos. Deixava de lado a seriedade imposta pelo institucional religioso e se mostrava uma criança.
Há relatos de que a consciência pesava para Dino e ele então se desculpava. Desculpava das palavras humanas que dizia. Desculpava pela delicadeza que não refletia a áurea de santidade que lhe impunham. Dizem que ele inclusive chorava. Sim. Chorava as palavras que não dizia e os sentimentos que não vivia. Mas acima de tudo, dizem que Dino penava as interpretações que faziam. Ele era sensitivo. Sabia quando a maldade estava ocupando a mente de um ser e ditando pensamentos que não revelavam a verdade. Dino lia o olhar e percebia quando este era de condenação, mesmo que o rosto revelasse falsamente aceitação.
O féretro chegou. Foi colocado no corredor central, ladeado de coroa de flores e mensagens de adeus. Longa fila se formou para despedir de Dino. Margarida coordenava com voz forte e modo odioso o momento. As beatas cantavam hinos tristes criando uma atmosfera de sofrimento para além do suportável. Eu me questionava se tudo isso era necessário.
O Sr. Arlindo, de mãozinhas postas se aproximou. Perguntou com docilidade e tristeza na voz quando o novo padre chegaria. Sua pergunta não me causou estranheza. Ele enganava a outros, eu, porém, sempre percebi o jeito “arlindo” de se relacionar: dá-se com uma mão, cobra-se com a outra. Ele não estava ali para despedir de Dino, estava em busca de reconhecimento. O mal de Arlindo é contagioso. Todos querem receber os méritos daquilo que não fez.
Margarida mostrava serviço. Odiada pela comunidade dava seus últimos préstimos à Pe. Dino, desejosa de manter as chaves nas mãos, afinal, a comunidade não ficaria desamparada e novo sacerdote chegaria. Incapaz de exercer sua personalidade em casa, uma vez que a família não aceitava suas imposições, a sacristia tornou-se seu reduto autoritário. Naquele lugar Margarida era mulher de verdade, disfarçada de uma doce alma que só deseja servir com e por amor.
As beatas cantavam, enquanto suas vozes desejavam mesmo era fofocar as andanças de Dino. O “bênça padre” dado nas calçadas da velha comunidade, acompanhado de um leve balançar de cabeça escondia a curiosidade felina dos seus questionamentos. Dino sabia como tudo isso funcionava. Sofria, mas não reclamava.
A fila andou e me aproximei do caixão simples, mas bem ornado para o adeus final. Os olhos de Dino não mais me fitariam. Sua expressão revelava alguém que cumpriu fielmente, não sem dor a sua missão. Parei por um instante que pareceu uma eternidade. Não queria que aquele momento terminasse. Imaginei Dino levantando e eu podendo abraçá-lo com devoção.
Já fazem alguns anos da sua partida e o espaço vazio deixado por Dino nunca foi preenchido. As inquietações que ele viveu sem ser compreendido foram assumidas por mim. Sim, descobri que não importa o quanto você conheça uma pessoa, você nunca conseguirá trilhar seus passos para sentir o cansaço de seu caminho. Assim sendo, o julgamento é revólver apontado para o próprio peito. Só julga quem não tem amor.
Passei a falar mais de mim para mim mesmo. Passei a imaginar como seria o dia do meu adeus. Fiquei imaginando para quem a minha morte seria espelho, como a de Dino foi o espelho meu.
----- * -----