Carambolas
Carambola era fruta da minha infância. Me dá água na boca quando lembro do gosto do suco doce azedo extraído com a boca, os dentes recortando os gomos um de cada vez metodicamente até sobrar só o miolo fininho.
Se não comesse direto do pé, à mesa eu passava a faca para fazer pequenas fatias estreladas - descoberta que achei genial pensando que tinha sido minha.
Depois acabou o tempo de fruta no quintal e com ele as carambolas, as vagens do pé de ingá, as framboesas do mato, o cajá manga, tomate no pé, a feira de dentro do próprio sítio.
Certa vez, depois de ser mãe e criatura que faz feira e supermercado, encontrei carambolas embaladas num prato de isopor cobertas com filme PVC. Fiquei suprpresa e chocada. Aquilo não era um destino feliz de carambola. Comprei por saudosismo e por piedade das frutas embaladas e asfixiadas numa prateleira gelada.
Lavei cada uma cheia de pensamentos adultos, de quem vive na era do agrotóxico e tem imaginação pouco generosa acerca da higiene das mãos que as colheram embalaram e transportaram.
Examinei a mais bonita e estremeci de antecipação.
Na primeira mordida, o gosto não combinou com as lembranças.
Fiquei olhando a carambola mordida.
Uma pequena coisa se moveu, saindo pelo gomo, na meia lua marcada pelos meus dentes.
Era um bicho feito o das goiabas, que não como por nojo e pelo gosto que não me agrada.
Devo ter comido muita carambola com bicho sem saber. E era feliz sem saber.
Comer fruta com bicho, só mesmo sem saber.
Piorei o destino das coitadas e joguei todas no lixo. Com tristeza.
Nunca mais tive olhar para carambolas mas hoje elas reapareceram bem amarelinhas e bem na minha frente.
Não gosto de feiras. Do amontoado de pessoas e carrinhos, dos feirantes e ambulantes disputando os fregueses a grito e as freguesas à gentilezas. Sou fã de Hortifruti.
Mas hoje a caminho das compras passei por uma feira, meio vazia por causa da chuva e frio polar carioca.
Me pareceu muito bonita, vagas com sobra para o carro.
Sacolas para compras a postos, resolvi experimentar.
Adorei a feira com chuva. Calma, arrumada, limpa, preços que me pareceram muito justos, produtos, viço e perfumes variados como nao sinto no Hortifruti.
Os feirantes estavam alegres, numa espécie de clima diferente dos noticiários. Mas dá pra ver a vida dura deles. E por isso mesmo me deu mais alegria em comprar. Uma espécie de agradecimento pelo trabalho que acontece antes de tudo que chega à mesa mas que só registro no ir e vir de supermercados e no espanto em pagar as somas registradas.
A criatividade e sortimento na feira, as tapiocas, queijos, pastéis e coisas semi prontas são um encantamento à parte do qual eu havia me esquecido na urgência de ter tempo de existir, trabalhar, estudar, tocar os dias, a vida, os filhos, o tudo.
Hoje tive a sensação de ter chegado à uma outra ponta da vida. Aquela onde o mundo não acaba se eu for à feira sem pressa e curtir a colheita alheia. Bom perceber e experimentar isso antes de estar numa cadeira de rodas ou de precisar de alguem que me compre um pé de alface.
Minha implicância com as feiras passou. Não vi lixo jogado, porém tampouco fiquei para ver como fica a rua quando desmontam as barracas e vão embora.
As carambolas estavam lá. Li que fazem muito mal a quem tem problemas renais. Se é verdade, fui criança com rins perfeitos.
Não tive vontade de reviver o gosto delas e ao mesmo tempo me preocupar em garimpar minhocas por dentro... mas fiz uma foto en passant.