O amigo filósofo

Esses dias, ao participar de uma palestra que se propunha a debater assuntos a respeito da educação de crianças com deficiência, no que tange a super dotação, lembrei de um amigo.

Não lembro mais seu nome, mas com toda certeza ele lembra o meu.

Completados 18 anos, iniciei o processo de supletivo para concluir o ensino médio.

Ensino acelerado, a galera vez ou outra se reunia no refeitório afim de estudar para mais algumas provas no dia.

Quase sempre, ele estava lá. Agitado, cheio de livros, revistas, pastas, módulos de estudo, rascunhos, estojo, fazendo diversas marcações.

Como se não faltasse, ainda não conseguia se manter parado.

Conversava com todo mundo, queria apresentar suas ideias, reportagens novas que lia, apresentar suas teorias a partir de fatos históricos.

Para toda conversa ele tinha uma referência, para toda doença ele tinha a lembrança de um remédio ou simpatia da época de sua vida na roça.

Se não me engano, ele já se aproximava dos 30 anos de idade.

Era esse cara, que vezes incomodava alguns, alegrava outros, e até chegava a ser ignorado por certas pessoas possivelmente, incompreensíveis.

Não entendo como podem chamar um cara desse de maluco...

Agitado de mais, com ideias de mais, falante de mais, porém maluco?

Tá. Lembro que em período de almoço, estava todo mundo no refeitório lanchando, gente chegando, outros se preparando para ir embora e outros simplesmente estudando conteúdo para uma prova mais tarde ou já feita.

Se ele estivesse ali, se levantava, conversava, falava sozinho.

Pensava em voz alta!

Se levantava em um rompante, e saía.

Pegava café, andava um pouco lá fora, e voltava.

Eu, estava naquela vida louca...

4 ou 5 provas por dia, cumpri 2 anos em 10 meses.

Tinha que dar certo!

Além disso, ainda havia o curso durante a tarde, os projetos, os meus pessoais, que futuramente, me dariam algum lucro financeiro para sobreviver.

Horário de almoço que eu ia em casa quando dava, e por vezes acabava por ficar lá mesmo.

De 7:00 da manhã até às 22:00, já era rotina...

Eu, corria com as matérias, e o resto do pessoal nem aguentava estar mais ali.

Até que, vendo meu esforço, meu possível isolamento naquele refeitório todos os dias, puxou assunto:

Respondi.

Iniciou-se um contato fiel, diário.

Uma vez que a maioria do pessoal o ignorava, eu tentava ver qual era daquele cara.

Por fim, descobri que ele também corria...

Tirava notas baixas em algumas disciplinas, isso de acordo com a visão dele.

Coisa de gente perfeccionista, que eu também era.

Média 90 ou 100, era nossa meta!

Triste era quando vinha um 85, ou até 75.

O nosso fim!

Ele, realizava várias provas em um só dia, visava diversos projetos, sempre na correria.

Também queria terminar logo...

Sempre que eu saía de uma prova, de uma correção, de uma oficina, ele estava lá.

Cheio de materiais em cima de uma mesa enorme, estudando que nem louco.

Falante, agitado, com o nosso fiel café.

Quer café?

Foi aí que se iniciou também o meu vício.

Hoje, em meio a correria do dia a dia, não abandono o nosso fiel companheiro de muitos tempos.

Em todas as provas da faculdade, produções aceleradas de meu trabalho ou até mesmo para escrever muitas linhas, aqui está.

Por vezes, quando me percebo muito agitado e cheio de ideias, até penso:

Será que foi o café que o deixou assim?

Desde o dia em que tivemos o nosso primeiro contato, nunca deixei de dar uma atenção pra ele.

5 ou dez minutos, que mal faria?

Lembro que algumas vezes estudava um pouco, e quando fazia uma pausa, lá estávamos nós discutindo nossas teorias loucas.

Outras vezes, levei meu próprio almoço, pedi meu lanche por ali, até me atrasei para meu curso, envolvido em uma discussão qualquer, em uma descrição de monumentos históricos que ele fazia de uma revista.

Sempre assim.

Finalizava uma conversa, pegava minha mochila, abria minha bengala, e perguntava:

Quer que eu te leve até lá fora?

Não. Obrigado. Estou de boa.

Tá. Vai pela sombra!

Ríamos, nos cumprimentávamos e a vida seguia.

Eu ia para o meu curso, e ele voltava para seus estudos.

Agitação maravilhosa!

Foi assim que comecei a escrever minhas primeiras crônicas...

Intervalos de provas com meu notebook na mesma mesa, depois de uma discussão incompreensível para o mundo com esse cara.

Eu sou um tanto horrível de memória...

Talvez por isso escreva crônicas.

Vi, vivi, gostei, escrevo.

No futuro, com toda certeza eu vou lembrar, sentir falta, mas terei necessidade dos detalhes, que de maneira alguma os lembrarei.

Pois, só sei que esse cara era incrível.

Tive de pausar algumas leituras por causa dele? Sim!

Tive até mesmo de pausar minha caminhada na avenida por encontrá-lo e ele se sentir na necessidade de me orientar de maneira reta na calçada? Também sim, várias vezes.

Só sei que, isso me fez feliz, e garanto que a ele também.

Eu estava em um período de novas amizades, novas adaptações por conta de minha deficiência visual, e tais assuntos que tivemos contribuíram e muito para minha visão de mundo como adulto.

Hoje percebo que o mundo ignora o diferente, sem dó.

Não por ser ruim, estranho. Mas sim, por não entender, e nem tentar.

Estamos sim, preocupados de mais com nossas próprias vidas, e por vezes até com a do outro, mas de modo nada positivo.

Dentro de nossa caixa, esquecemos do mundo.

Ele não. Já pensava fora da caixa, queria entender o porquê de tudo.

E de tal forma, parecia que sabia tudo.

Afinal, era curioso!

Buscava, e não descansava até conseguir respostas.

Eu?

Não entendo quase nada.

Estudo muito, por necessidade.

Afinal, preciso me manter atualizado!

Teorias, novas ideias a todo momento, análises históricas citando datas, feitos, autoridades e personagens importantes, não é pra mim.

Reconheço!

Mas, gosto de me envolver em tais assuntos.

Que seja para ouvir e responder de vez em quando, nunca saio perdendo.

Lá na frente, sempre acabo usando esse momento como referência em algum assunto, ou até mesmo prova.

Muito perde aquele que ignora...

Nunca soube do diagnóstico desse amigo. Porém, espero que ele tenha conseguido alcançar seus objetivos depois de todo esse tempo, que nem é tanto assim.

Lembro que no fim do ano as coisas se complicaram pra mim.

Me inscrevi em umas duas provas de concurso público, 2 vestibulares, ainda com algumas provas faltando e projeto de fim de curso a concluir.

A vida estava a milhão...

Acabava passando por lá mais à noite, momento em que ele já havia ido embora.

Sem celular e nem redes sociais, a coisa complica!

Hoje, já prestes a terminar a faculdade, com 21 anos, ainda sinto falta daqueles horários de almoço, daqueles vários cafés, daquela correria e encontros inesperados na rua.

Talvez, em um dia desses, eu ainda apareça por lá.

Saia de bobeira no mesmo horário, na mesma localidade, e quem sabe não o encontro?

Wenderson Cruz
Enviado por Wenderson Cruz em 22/08/2018
Código do texto: T6426773
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