Acordou  disposta a resolver angústias e pendências. A noite havia sido terrível: briga na vizinhança, tiroteio na comunidade, o som do baile funk e para piorar sua própria família ignorou por completo os pedidos de ajuda. Passou a madrugada remoendo a raiva e planejando o que faria assim que o dia clareasse.  Tim-tim por tim-tim, frase por frase, xingamento por xingamento. Estava cansada da cara de desconfiança dos pais, do olhar de descaso dos vizinhos, da risada debochada do jornaleiro. Todos estavam mancomunados, eram todos contra ela.

Ligou a cafeteira, abriu o armário e admirou a coleção de pó de café. Anos e anos colecionando os melhores blends, de quase todos os lugares do mundo, perfeitamente embalados, etiquetados e enfileirados para seu deleite e prazer. Prazer!? Que prazer, se nunca havia tido coragem de abrir um único pacotinho? Havia café guardado há mais de dez anos, comprados a peso de ouro e nunca degustados.



Olhou ao redor, a água fervia e ela não conseguia se decidir, fechou os olhos e pegou qualquer embalagem. Abriu depressa, sem pensar em desistir, jogou duas colheres bem generosas do pó escuro e aromático no velho coador de pano. Coou e preparou uma boa xícara. Um gole para a dor , outro para a mágoa, mais um para o rancor, juntou a raiva e a  tristeza, finalizou com um suspiro profundo.

Quando terminou de beber todo o bule, resolveu dar uma volta e repor o pacotinho que havia usado.  Ainda era uma colecionadora compulsiva, mas sentia-se infinitamente leve.

 
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 19/08/2018
Reeditado em 23/08/2018
Código do texto: T6423841
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