Diário de Sonhos - #125: Uísque, Morfina e Dramin
Sonhei que estava em uma espécie de faculdade bem grande, do lado de fora. Anoitecia. Queria ir pra casa. Comecei a andar por uma rodovia. Chego em uma espécie de anel rodoviário bem complexo, com outras rodovias cruzando por acima e abaixo da minha. Continuo caminhando. Passo por um grupo de pessoas acampando próximas a uma fogueira. Elas me estranham. Não gosto delas. Continuo caminhando.
Noite. Estou num bairro, numa típica vila da periferia de São Paulo. Não lembro o caminho. Sigo por algumas vielas obscuras e sinistras. Chego à conclusão que acabei de entrar em uma favela. Continuo seguindo por becos estreitos. Subo uma ladeira e encontro minha mãe. Ela está presa em uma espécie de cadeira de rodas que por sua vez está presa em algum tipo de trilho na parede. Ela disse que tenho de continuar subindo. O mecanismo do trilho começa a trabalhar, fazendo um som metálico muito ruidoso e sinistro. Sai faíscas. O trilho leva a cadeira de rodas lentamente ladeira acima. Sigo meio de longe pois aquilo me assusta. De repente o mecanismo pega velocidade e ela sobe muito rápido. Uma dezena, senão centenas de outras cadeiras de roda sobem logo atrás em velocidades absurdas. Tenho a impressão de que é a mesma cadeira de rodas da minha mãe realizando um loop atrás do outro.
Noite. Tudo escuro. Estou no mesmo lugar, mas as cadeiras de roda sumiram. O trilho sumiu. Minha mãe sumiu. A ladeira continua subindo. A noite está ainda mais escura e silenciosa. Tenho a impressão de que as paredes dos barracos em volta cresceram muito. Continuo subindo. Chego em um muro de mais ou menos dois metros e meio. O muro na verdade é uma das paredes da laje de alguém. Olho com atenção e vejo que na verdade parece um quarto ou sala de estar. Tem uma televisão ligada passando futebol. Um berço. Uma poltrona e um sofá. Adiante a ladeira continua subindo.
Tento pular o muro, mas sou muito gordo. Ouço uma voz (minha voz?) me provocando: "Ei, seu gordão do caralho, não consegue nem subir essa porra, caralho? Tu é um merda mesmo, seu porra do caralho!". Após muito esforço consigo me pendurar, mas bem neste instante um homem mal encarado entra. Ele não me vê, mas tenho medo de passar por ali. Preciso encontrar outro jeito de subir.
Noite. Passo por várias vielas, mas todas descem. Não encontro nenhuma rua subindo. Vejo a porta do que parece ser alguma espécie de galeria comercial. Resolvo entrar.
Lá dentro o prédio é ainda mais escuro e silencioso. Umas poucas lâmpadas incandescentes bem fracas iluminam o local. Tudo é de madeira. O piso, as escadas, o corrimão. Madeira bonita. Ébano? Mogno? Bonito. Resolvo subir as escadas.
Estou perdido. Muitas portas, escadas e corredores se intercalam no segundo andar. Ouço o som de música e gente rindo. No fundo do corredor encontro uma loja de tatuagem. Conheço essa loja. "Smoking Fly". "Fucking Fly". Alguma coisa assim no letreiro de neon na porta. Mas eu conheço o lugar. Sei que um colega trabalha aqui.
Entro na loja e cumprimento as pessoas. Não consigo lembrar como elas eram, mas sei que todas eram jovens, curtiam rock e eram amigas. Sou recebido como um grande amigo. Aperto as mãos de um por um. Todos querem conversar comigo. Pergunto se alguém conhece o Vitão. Sou ignorado. Pergunto novamente. Eles não param de falar, de contar coisas, de me oferecer coisas, mas ninguém presta atenção na minha pergunta. Digo que estou perdido e quero chegar em casa. Alguém pergunta se eu quero coca.
- Não gosto disso, cara.
- Do que você gosta então?
- Gosto de remédio pra dormir. Gosto muito de misturar com cerveja, uísque. Qualquer coisa. Gosto de tomar dramin com umas duas doses de uísque. Mas o que eu queria mesmo era morfina, usava todo dia se tivesse.
Mal termino a frase e vários braços me pegam. Alguém me senta numa poltrona muito confortável. Outro faz um torniquete e pergunta se eu sou bom de veia. Um outro pergunta se eu quero Jack 'n Coke com Jack Daniels ou Jameson's.
Antes que eu me dê conta alguém já injetou morfina na minha veia. Logo em seguida me dão cinco comprimidos de Dramin - "você gosta do cem, né?". Engulo tudo com um Jack 'n Coke bem gelado.
Tudo fica estranho. Os sons vêm e vão, como num disco com defeito. A visão fica extremamente embaçada. Os movimento são lentos e borrados, parecem desenho em carvão. Não sei dizer se estou de pé, sentado, agachado. Minha cabeça balança como uma câmera presa numa vara de pescar. Minhas palavras não têm sentido. Consigo apenas expressar sons sem conexão com nenhum idioma. Tudo parece uma espécie de sonho borrado em câmera lenta. Uma pintura impressionista feita de carvão a quinze quadros por segundo. Não tenho medo. Sinto-me calmo e relaxado, apesar de tudo.
Noite. Estou do lado de fora. Chove, mas não em mim. Estou numa garagem aberta. Estou deitado num canto escuro. Alguém começa a dizer algo. Um homem alto. Não entendo nada. Só consigo dizer que gosto de misturar remédio pra dormir com uísque. Reparo que logo à minha frente há uma moça. Ela já estava ali antes ou surgiu do nada? Ela é bonita. Seus olhos são grandes e bonitos. Seu cabelo não lembro, mas era bonito e azul. Ela me olha com interesse em tudo o que digo. Quando vou perguntar seu nome ela me puxa e me beija. Não um beijo de língua, nojento, melado e demorado, mas um beijo bonito, leve e muito rápido pro meu gosto. Uma sensação mista de surpresa, fragilidade e medo me invade. Fico envergonhado por causa do homem, mas ele vira a cara. Estou assustado mas também sinto que não consigo levantar. Passo os braços em volta de seu corpo, ela passa os dois braços sobre meus ombros e segura minha cabeça com as duas mãos. A sensação é estranha quando ela me beija. Frio e calor ao mesmo tempo. Medo, fragilidade, mas também conforto e vontade de dormir e não acordar mais.
São Paulo, quatorze de agosto de dois mil e dezoito.