Com a mesma moeda

Elas são sempre mais sensíveis a essas sutilezas apesar de não se aterem tanto a uma ou outra, porque a própria dispersividade, também natural do gênero, desvia-lhes o foco para outras agudezas. Creio que por causa mesmo dessas propriedades é que foi ela a primeira a perceber a enorme flor amarela de repente desabrochada no meio do matagal à beira do caminho. “Tadinho do girassol! Olha onde ele cismou de nascer.” Sorrio aquiescente. Pela manhã gosto menos ainda de conversar. Acostumada a meus silêncios resigna-se continuar na conversa de mão única.

Entendo que o evento da descoberta da flor já se esvaneceu em sua mente. Por minha vez percebo que me detive naquele instante, encantado com o mistério da flor que acompanha a trajetória do sol, do nascente ao poente e o verso singelo da cantiga brega ronda agora minha cabeça cansada: “Porque nasce esquecida não deixa de ser uma flor”, também a idéia de que devo florescer onde estou plantado, que sempre me perseguiu desde a infância, me volta agora com mais força e, estranhamente, a lembrança da pobre flor esquecida no meio do matagal me conforta profundamente.

O pensamento em mim plantado por uma jovem doutora da Igreja, ainda nos anos de minha juventude, tem me esteado nos terrenos e climas mais inóspitos, sustentando com a riqueza nutricional de seu húmus a perseverança, combalida em algumas situações pela vontade de fugir e justificar-me da falta de condições adequadas ao reflorescimento.

Enquanto caminhamos de mãos dadas como nunca deixamos de fazer em todos esses anos que nosso amor tem durado, ela parola sem perceber o quanto absorto estou em meus próprios pensamentos, a cabeça iluminada pelos girassóis de Van Gogh e os versos de Manoel de Barros, sobre esse tema, a banhar-me o espírito entristecido, com o abençoado bálsamo da arte.

Um beijo rápido e um dia de separação exigida pelas obrigações do trabalho. Enquanto o sol cruza imponente o diáfano céu de agosto. À noite quando nos recolhemos para o descanso meu último pensamento ainda é para a flor esquecida. Nesses momentos noturnos, geralmente o palrador sou eu. Repito para ela a inocente lenda de Clítia:

“Clítia era uma jovem ninfa que apaixonou-se pelo deus do Sol, todos os dias o observava enquanto ele dirigia sua carruagem de fogo. Hélio, lisonjeado por tanto amor, depois de ter seduzido a jovem, a abandonou e escolheu ficar com sua irmã. Clítia estava tão desesperada que chorou durante nove dias inteiros em um campo enquanto continuava a observar o deus do Sol viajando na sua carruagem.

A lenda diz que o corpo da ninfa lentamente tornou-se endurecido, transformando-se em uma haste fina, mas resistente, com os pés aderentes ao chão, enquanto o cabelo se tornava amarelo. Clitia tornou-se um girassol que continua a seguir o seu amor.”

O ressonar leve me comunica que agora sou eu que estou falando sozinho.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 13/08/2018
Código do texto: T6418004
Classificação de conteúdo: seguro