Não deu

Tem dia que não dá mesmo. Parece até que é verdade essa coisa do universo conspirar contra ou a favor. Há vezes em que a inspiração chega assim como uma torrente que inunda a alma e vai transformando o nada em arte, o nulo em obra. Outras vezes você insiste espremendo os miolos e nada sai. Quando a coisa flui copiosa, fica com jeito de epifania. Quando não flui. Não flui e pronto. Não tem remédio.

Dia desses o amigo Paulinho Souza, músico e escritor a quem reverencio por sincera admiração, comentou ingenuamente que sou capaz de escrever uma crônica sobre qualquer coisa que passar pela minha frente. Imagino se ele me visse nessa luta improfícua.

Estou oprimido pela absoluta falta de capacidade criativa, olhando para o documento em branco na tela à espera dos primeiros caracteres que tardam, quando vem uma mosca doméstica pousar bem no centro do mesmo. Abano instintivamente a mão já pensando que essa espécie não é comum em dias frios, então o que é que ela está fazendo aqui? Também seu instinto de conservação a faz se arrancar da tela num vôo cego, dá um rodopio no ar e retorna acintosamente ao seu iluminado campo de pouso.

Dizem que o bichinho, por causa de seus olhos facetados, tem um campo visual de trezentos e sessenta graus, além de possuir sensores por todo o corpo, capazes de detectar o mínimo movimento do ar. Esses meus indispensáveis conhecimentos de biologia me levam a provocá-la novamente com um leve toque na mesa. Ela se arranca novamente, repete as acrobacias e volta ao mesmo ponto, não deu pra contar as batidas de suas asas, mas segundo consta esses pequenos dípteros podem batê-las trezentas e trinta vezes por segundo.

Dizem também que existe cerca de cento e vinte mil espécies de moscas organizadas em mais de cem famílias, mas a que acho mais interessante é a espécie encontrada em 1981 habitando o nordeste de Queenslad, na Austrália que recebeu o nome de Scaptia (Plinthina) beyoncea. Contam que mosca foi batizada por seus descobridores em homenagem à cantora e atriz americana Beyoncé Knowles. A mosquinha famosa tem o abdome dourado e, para os pesquisadores, lembra o figurino da artista pop no videoclipe da música Bootylicious, do Destiny’s Child, grupo que projetou Beyoncé.

Recordo-me que Richard Bach, no seu romance autobiográfico A Ponte Para o Sempre, conta que seu instrutor de vôo fazia seus cadetes baterem continência para uma mosca que passasse voando, em respeito às suas asas. Levo a mão à testa numa continência, não à prussiana como é praxe no Brasil, mas à moda dos militares franceses com a palma voltada para frente. Acho que a mosquinha não viu meu gesto como um ato de respeito, porque alçou vôo e saiu pela janela.

Livre da intromissão, tento me concentrar novamente no meu texto da semana, mas concluo que não vai dar mesmo. Acho que meu amigo está enganado a respeito da minha capacidade literária.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 13/08/2018
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