Assim ou ... nem tanto. 148
O Gato Amarelo
Viram-se. O gato amarelo, protegido pela rede que dividia os quintais, fitou-a curioso. Escutou-lhe a voz meiga e o chamamento mas era selvagem e fugiu logo que a mulher fez menção de se aproximar. Nasceu no fundo da horta como um ser frágil, doce e protegido. Sua mãe achou no meio dos trapos destinados à reciclagem o ninho ideal e alimentou-o até achar que era tempo. A luta pela vida começou depois. Bernardo levou os trapos e a mãe deixou de ser vista. Quando a fome apertou o gatinho amarelo miou à porta da cozinha de onde lhe vinha, delicioso, o cheiro da comida. Adosinda não gostava de gatos e jogou-lhe o esfregão da loiça e viu-o correr pelo muro e saltar para o telhado da garagem. Nos dias seguintes foi mais ou menos igual a receção da cozinheira que não gostava de gatos nem de cães e sentia prazer em degolar as galinhas aproveitando-lhes o sangue escuro para a cabidela, sua especialidade gastronómica. O gatinho amarelo, obrigado a alimentar-se no lixo, cresceu sozinho e fez-se arisco. A voz da vizinha, melodiosa, foi o som mais acolhedor que escutou em toda a sua curta vida. Voltou para comer o que ela metera pelos buracos da rede e para a ouvir chamá-lo com doçura. Passou a ser assim. Ela vinha, falava-lhe com carinho, metia os pitéus pelos buracos da rede e afastava-se para, de longe, o ver comer. Quando um dia o bicho não fugiu começou uma relação de amor entre os dois mas faltava ainda a confiança. A mulher tomou por fim a decisão final e rompeu a malha da rede. Depois estendeu a mão e o gato raspou-se nela antes de mudar de vida e de quintal. – Não, o gato não é nosso. Fique com ele. Odeio gatos. São traiçoeiros, disse. Podem até vazar um olho a uma criança. E Adosinda, com a galinha daquele dia presa pelos pés voltou a degolar como gostava.