Você já foi a Petrópolis? Então vá

VOCÊ JÁ FOI A PETRÓPOLIS? ENTÃO VÁ!

O salão estava cheio. A orquestra tocava uma música dolente, dos tempos da minha infância. Os pares dançavam no meio do salão e eu olhava fixamente para o vitral enorme na parede oposta. Representava uma cena campestre e me transportei para o local esquecendo que estava no meu baile de formatura do ginasial. Hoje nem se fala assim: chama-se término do primeiro grau do ensino médio. Estava orgulhosa de ter-me formado; vestia um vestido longo de tule, feito pela minha mãe. Já havia escolhido meus pares para a valsa do pai, que seria meu tio Victor; meu primo Sérgio, para a valsa do irmão, que não tinha e, seu irmão Claude, para a valsa do namorado. Tudo deveria estar perfeito e não estava. Por que? Pensei em meu pai que se fora há alguns anos. Não era sua falta que me fazia nostálgica, pois o irmão de minha mãe tentava e conseguia supri-la, com o conforte de sua casa de três andares na zona sul do Rio de Janeiro. Estudava em colégio tradicional e de meninas privilegiadas da elite carioca. A festa se realizava no Clube do Fluminense, chamado de pó de arroz, por causa de seus sócios serem da nata da sociedade local. Tudo isto era o cenário perfeito para a realização de um sonho de jovem romântica e eu fixava minha vista no vitral. O que havia de errado para tentar uma fuga? Nada estava errado e, no entanto, tudo me parecia assim. Estava deslocada, me sentindo como um peixe fora da água. Embora eu fizesse parte deste ambiente, conseguira as notas necessárias para encerrar esta fase da minha vida; meu pensamento rebelde levava-me para longe dali. Talvez em um piquenique na cidade de Petrópolis fosse mais do meu feitio, embora a cidade seja chamada de cidade imperial e de fato, podemos assim considerá-la uma vez que, o próprio imperador Pedro II a escolheu como refúgio de verão.Chamou técnicos europeus, como o alemão Koeller, para erigir um palácio, subindo a serra de trem ou de carruagem, o que deveria levar uma eternidade. Fujo, dando voltas, numa escapada do meu presente e me encontro num passado mais remoto e elitista do que o ambiente do baile de formatura. Se pensarmos bem, tudo aquilo, em uma hora terminaria e ficaria apenas um álbum de recordações, com aquelas jovens em trajes de festa, no dia da sua formatura. Talvez nunca mais se encontrassem, ou talvez nem se lembrassem deste momento. A Orquestra Tabajara mudou o andamento da música, como que chamando os presentes distraídos, para o instante mais solene: a valsa. Alguém me tocou no braço e disse que subiríamos as escadas para descermos, uma a uma, conforme a chamada em ordem alfabética. Nossos pares nos encontrariam no primeiro degrau e nos levariam para o centro do salão. Não poderia mais ficar em Petrópolis e tive que me concentrar, engolir a emoção e prestar atenção para não pisar no vestido e não tropeçar nos pés de meu tio.

Hoje estou em Petrópolis, em meu apartamento na Avenida Roberto Silveira, respirando o ar da serra que tanto me encanta, disposta a falar das belezas e tradições da cidade e me veio, sem querer, a lembrança do meu baile de formatura nos idos dos anos cinqüenta. Há duas semanas reuni, no meu apartamento do Leme um grupo de nove colegas do Colégio Assunção, em Santa Teresa, para trocarmos lembranças e fotos dos nossos tempos de estudante. É claro que o baile de formatura foi muito comentado e quase todas tinham as mesmas fotos que minha mãe se encarregou de guardar. Eu não tinha o espírito de saudosismo de rever e relembrar o que passou. Acho que me dói pensar na moça delgada e tímida que eu era e ver a matrona atirada em que me tornei. Sou de família tradicional, freqüentei colégio e faculdade de elite; trabalhei no mais elitista dos Ministérios: o Itamaraty. Viajei por lugares estranhos; participei de apresentações de balé no Lincoln Center, em Nova York, onde fiquei, no foyer, lado a lado com Jaqueline Kennedy; morava na Rua 48 esquina de Segunda Avenida e, muitas vezes, vi Katherine Hepburn, que morava na rua 49, varrendo sua calçada. Fujo do convencional e ele me persegue. Nada mais convencional do que um fim de semana em Petrópolis e, no entanto, procuro fazer isto quase sempre e por prazer. Curto andar pelas ruas, reparar as casas antigas, as que estão sofrendo reformas, como a pousada que acabou de abrir na esquina da minha rua. Acompanhei a obra desde o primeiro momento, pensando quem seria o felizardo que tinha dinheiro para comprar esta mansão tão encantadora; era a minha favorita. Pensei que seria um milionário que, certamente traria convidados e eu, como plebéia, ficaria na grade de entrada vendo os figurões aparecerem. Nem saberia como estava por dentro. Como pousada, não só a visitei inteira, inclusive os quartos charmosos, como fui das primeiras que comer em seu seleto restaurante, cuja chefe fora colega de trabalho, no meu tempo de Consulado em Nova York. Ela aproveitou este estágio para fazer cursos de gastronomia e se aperfeiçoou na França. Tento ser popular como nosso presidente e me vejo sempre no meio da elite que o próprio tanto condena.

Voltando à razão desta crônica, Petrópolis é uma cidade para todos. O presidente (que aliás, nunca veio desfrutar do seu encanto e seu frescor) não deve conhecer magnífico Palácio Ouro Negro, o preferido de Getúlio Vargas, que mandou construir no andar térreo, ou no sub-solo, uma piscina interna para os dias de calor. Os ricos, os moradores remediados, como minha empregada e todos os visitantes e convidados de qualquer classe social ou intelectual podem usufruir deste privilégio. Aliás, se pensam que em Petrópolis não faz calor se enganam. Ou as condições meteorológicas mudaram ou eu sou muito calorenta. Não agüentei o clima e mandei fazer janelas especiais para adaptar um ar condicionado. No verão o sol bate, a tarde inteira, na parede do meu quarto. Não há ventilador de teto que refresque o ambiente. De noite não há brisa e o quarto fica abrasador.

Mas não é destas trivialidades que quero falar, mas dos meus amores: a Catedral, o Palácio de Cristal, a Praça da Liberdade, a casa de Santos Dumont, agora com o 14bis na esquina da minha rua, a Pousada Imperial, o Palácio de Dom Pedro II e também museu, o show de som e luz (às sextas e sábados à noite, nos jardins do museu; espetáculo que não deixa nada a desejar se comparado com os que vi nos Castelos do Loire e junto à Esfinge no Egito), o Palácio Ouro Negro, onde houve uma época em que faziam saraus com músicos locais, à luz de vela, revivendo o clima do império, etc... Vir a Petrópolis é um privilégio e não consigo entender pessoas que possuem propriedades locais e delas não usufruem. Acho um crime de lesa-majestade.

A Avenida Roberto Silveira, a Praça da Liberdade, a Avenida Ipiranga, são os roteiros da andarilha. Respiro o ar perfumado dos jardins, admiro a casa dos sete erros, subo as escadas da Catedral e entro em sua nave sombria e silenciosa; admiro o colorido de seus vitrais e fico imaginando um casamento lá, no tempo do império, com velas e castiçais espalhados pelos quatro cantos, para iluminar aquele enorme espaço gótico. Sinto uma emoção imensa ao sentar num banco para rezar, o que é fácil em tal ambiente. É transcendente e surpreendente. Como pode alguém que já veio aqui não querer voltar?

Nesta época a que me referi, do meu baile de formatura, eu tinha uma amiga que morava, como eu, na Rua Pio Correia, Rio de Janeiro. Toda a rua foi desapropriada pelo governo, para a construção do túnel Rebouças (aliás conselheiro de Dom Pedro II). Os pais dela possuíam um bom apartamento na Avenida Ipiranga e ela e o irmão podiam trazer amigos para passarem, com eles, o fim de semana ou o carnaval. Eu fui uma destas privilegiadas e, como era amiga antiga de João Roberto Kelly, fizemos um grupo para as matinês domingueiras do Hotel Quitandinha que, nesta época ainda era hotel, em plena forma e com muito charme. Num mesmo ano fomos a 25 bailes pré-carnavalesco e do próprio! Talvez seja esta lembrança que me faz amar tanto esta cidade. Aqui eu sempre fui muito feliz! Aqui eu tive sonhos, vivi romances e aqui tenho uma realidade, a cada fim de semana, que venho descansar na serra. Os fantasmas são todos conhecidos e inofensivos. Convivo com o império e entro na internet, no mesmo ambiente e ao mesmo tempo. Escrevo, penso e medito. Programo o futuro, discuto as possibilidades, estudo as impossibilidades, rezo, e intercedo pelos amigos. Partilho meu santuário com alguns privilegiados e usufruo de uma paz e realização, que não encontro em outros locais. Reabasteço-me de paciência e preparo-me para as surpresas do Leme – Rio de Janeiro que, embora no mesmo Estado, é completamente diferente deste lugar. Aqui eu ouço música suave, bebo um uísque verdadeiramente escocês, leio meus livros prediletos, componho poesias, sonho com o que fui e ainda posso ser, falo, ao telefone com amigos de todas as partes do mundo.

É engraçado. Há dez anos tenho este apartamento em Petrópolis e nunca fui convidada para nada, por um local. Tentei ser sócia do Clube Petropolitano, na mesma rua onde moro, do outro lado do rio; o freqüentei por dois anos sem conhecer ninguém; sem que ninguém se apresentasse a mim. É verdade que não tenho marido para tomar cerveja como os maridos locais; não tenho crianças que brinquem com outras na piscina. Talvez por isto que ainda não me tornei uma petropolitana legítima. E, este pensamento, me dói. Eu me sinto minhoca: bicho da terra.

Não tem importância. Contanto que possa continuar a minha flanação pelas ruas, visitar a Catedral, assistir à missa das dez horas no domingo, na Matriz do Sagrado Coração, para ouvir os "canarinhos de Petrópolis, almoçar no restaurante Imperatriz Leopoldina, deliciar-me com um concerto no Palácio de Cristal e usufruir da cerveja da "bier fest", tudo bem. Na hora em que os locais começarem a selecionar a sua própria elite, aí farei um abaixo assinado dos proprietários lesados e excluídos. Enquanto isto, vou saboreando minhas recordações de colégio; os sonhos de juventude; as realizações de adulto; usufruindo da antena parabólica que me permite assistir os clássicos da Katherine e outros, lembrar das minhas aventuras, ouvir minhas músicas, compor meus textos, falar na internet, sonhar com o imperador, com as damas da corte, com os fuxicos, visitar parentes em Secretário e, se não tem outro jeito, voltar ao Rio de Janeiro, bem pertinho, para a minha rotina: cursos, terapias, missas, amigos, comemorações, compromissos formais e familiares. Não que não tenha escolhido e ame todas estas coisas. Mas o gostinho da serra é diferente. Se você não conhece Petrópolis, o que está esperando? Quando eu era pequena me lembro da Carmem Miranda cantando, de Dorival Caymi: Você já foi à Bahia? Não? Então vá. Eu digo com toda a certeza de agradar a você: Você já foi a Petrópolis? Não? Então vá!

Gilda Porto
Enviado por Gilda Porto em 06/09/2007
Código do texto: T641174
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