Crônicas, Passageiro: dentro da pele
Belém, 24 de julho de 2018, pensando no rio dos Macacos, Breves.
- Tio, aqui existem índios?
Perguntou a curiosa Elayni, de sete anos. Devia estar na vigésima indagação. Me sentia numa banca de avaliação para doutorado que não sei se farei um dia.
- Povos indígenas como se conhece por aqui acho que não mais. Um dia sim, muitos viveram aqui.
- Onde eles estão mais perto? Queria conhecer.
- Hummm, talvez no Amapá. Tumucumaque. Também em Altamira.
- Minha mãe viaja comigo sempre pra Macapá. Eu posso ir lá com eles?
- Claro, mas tem que pedir permissão pra eles, por respeito.
- Lá tem com quem brincar?
- Sim, tem sim. Tem os da sua idade.
- É como eu tenho que falar com eles?
- Seria bom aprender como eles falam.
- Me ensina?
Lascou. Que vergonha, que vergonha, não sei falar tupi-guarani, nossa língua-mãe, nem jê, nem dialeto que lembrasse o mapuá, daqueles que muito viveram por aqui em Breves, onde se fizeram fortes diante dos portugueses colonizadores, só assinando a Pax de Mapuá depois de muita negociação, fato escanteado nos livros de História. Onde também nasceu minha mãe e que provavelmente me é uma raiz profunda genética. Que vergonha. Como vou defendê-los? Pare, mocinha, você está me trucidando! Não me torture com essas perguntas!
- Vai, tio, me ensina!
- Eu não sei falar muito a língua indígena. Deixa ver, você deve fazer o sinal que quer brincar no rio e dizer Pará, Pará, que quer dizer rio. Aponte pro rio.
- Eles dizem Pará pra rio?
- É uma tentativa. Daí eles vão apontar para o rio também e já vão sair correndo e mergulhando.
- E os daqui? Pra onde eles foram?
-Eles estão por aí.
- Por aí onde?
-Dentro da gente.
- Como assim?
- A gente puxou pra eles.
- Mas quando? Eu sou branca.
- Mas tá sim, tá no seu sangue. No meu.
A pequena dama pôs a mão no queixo.
- Não pode. O senhor tem cabelo que não é liso.
- Mas te digo que todos nós aqui temos uma parte deles.
- Não acredito.
- Tudo bem, com o tempo verás se estou certo ou não.
- Como é uma casa de índio?
- Ah, é uma casa redonda, feita com palha, cipó, barro às vezes. Com coberta que nem aquela ali.
- Cadê?
- Aquela ali, casinha coberta de palha de buçu.
- É mesmo. Ali mora índio?
- Talvez há muito tempo atrás morasse alguém que se reconhecia. "Eu sou Mapuá"!
Me levantei e fiz uma pose altiva.
- Rsrsrsrsrsrsrs. É como eles andavam? De Barco que nem a gente?
- Andavam em canoas que nem daquela senhora que vai com a filha ali ajeitando matapi pra pegar camarão.
- Ahhhhh. Minha avó tem uma canoa. Ela me chama pra remar toda vez que eu vou lá.
- Assim que vão os índios nos igarapés. Sabe o que significa igarapé?
- Não.
- Caminho de canoa.
- Viu? Você fala a língua deles.
- Quem odera. Queria falar mais.
A menina com a mão no queixo pensando e olhando em direção à mata, à casinha de palha, à canoa ao longe, ao igarapé.
Coçou a cabeça.
Bom sinal.