ELES VIRARAM PERSONAGENS

1---Na década de 50, o escritor mineiro JOÃO GUIMARÃES ROSA, que em 1946 publicara "Sagarana" (contos), obra com 9 narrativas, de "O burrinho pedrês" a A hora e vez de Augusto Matraga", já marcada com uma linguagem especial e temas rurais. Quis ampliar o contato com o linguajar e os costumes dos sertanejos de seu livro de estreia e juntou-se ao grupo de boiadeiros que transportaria 600 cabeças de gado pelo interior de Minas Gerais. MANUELZÃO, o cozinheiro da tropa, era um tremendo contador de "causos", em especial à noite, com a cachaça da terra. Vaqueiro de figura encantadora, virou personagem numa futura novela, "Manuelzão e Miguilim". --- Passados 50 anos, duas turminhas de crianças de uma escola da cidade de Três Marias, a 255km de "Beagá", visitaram a fazenda no lugarejo de Andrequicé, para resgatar um pouco daquele universo já extinto. Fizeram perguntas à viúva do vaqueiro, dona Didi, descobriram como ele viveu, costumes e manias, e perceberam as diferenças entre o ambiente rural e o urbano. Conheceram também a igreja construída de costas para a cidade, "causa de atraso", segundo os supersticiosos. Entrevistaram o dono da venda que relatou as diferenças entre o estilo de vida do lugarejo e o de Três Marias. Na "aula do túnel do tempo", uma menina tocou o berrante que pertencera a MANUELZÃO. Estudaram o vocabulário de "certo" livro, fizeram leitura compartilhada e trabalharam o conto "Fita verde no cabelo". / Antes de irem a Andrequicé, tinham visitado a hidrelétrica e os pescadores do rio São Francisco, parte importante da economia de Três Marias. Esta cidade surgiu junto com a construção de uma barragem que, ao represar as águas do rio São Francisco, formou um imenso lago. A cidade está sempre em luta para criar uma identidade econômica e cultural. As crianças viram de perto o Velho Chico, fonte de renda para uma ativa colônia de pescadores, de energia, a estação de tratamento de água para o consumo de todos e o clube náutico, espaço de lazer. Depois, rumo às veredas do sertão: vida rural, vaqueiros e tradição.

2---Ah, MIGUILIM! Cordisburgo, cidade onde o médico-escritor nasceu, significa 'cidade do coração', palavra inventada pelo missionário que a fundou, padre João de Santo Antônio, que desejava homenagear o Sagrado Coração de Jesus. Juntou a palavra latina 'cordis', genitivo de 'cor' (coração) com o sufixo anglo-saxônico 'burgo' (cidade). Essa explicação foi dada pelo próprio GUIMARÃES ROSA em seu discurso de posse na ABL (tomara exercícios de leitura e impostação de voz pessoalmente com o doutor PEDRO BLOCH), demonstrando o interesse que tinha com as palavras. / Na vida real, a miopia dele já era grande na infância e via tudo embaçado, sem nitidez. Por causa disso, um tanto retraído, introvertido, calado observador de tudo. Belo Horizonte, o médico, os óculos... Quando conseguiu distinguir as formas e as cores do universo ao redor, veio o deslumbramento e esse amor ao universo o marcaria para sempre no ser e no pensar. Em geral, os escritores mantém fidelidade à sua própria infância e JGR foi um deles, ampliou-a, transbordando-a para a vida e os campos gerais. Daí, sua literatura, embora intemporal, começou por volta de 1917, o futuro autor com 9 anos de idade. e assim, nasceu o menino sertanejo MIGUILIM. / Filho de família abastada para a época e o lugar, JGR teve acesso à faculdade de medicina e na Santa Casa de "Beagá" conheceu Juscelino Kubitschek, que anos depois o nomearia embaixador. Preocupado com as letras, sim. Em 1936 escreveu um livro de poemas para concurso na ABL /inédito até hoje/, título "Magma" (procurara um nome curto que tivesse dois "aa" e descobriu que quanto mais "aa" tivesse um nome, mais bonito ficaria), e depois o livro "Sagarana", de contos, que o consagraria escritor. A palavra 'savana' já tinha um significado expresso, inventou: de 'saga', partiu para 'sagana', não gostou do som, 'sagarana' com quatro 'aa' e mantendo bem nítida a raiz 'saga'... embora a palavra inteira não significasse nada. Boa criação!

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LEIAM meus trabalhos Carrancas do Velho Chico -- "Gotas" do mar mineiro de J. G. Rosa, especialmente Parte VII -- Estudo sobre A Menina de Lá -- e Picadinhos roseanos, especialmente Parte I.

NOTA DO AUTOR:

Conto "FITA VERDE NO CABELO" - originalmente publicado em "Ave, palavra" - espécie de paráfrase (intertextualidade) de "Chapeuzinho Vermelho", com sutil abordagem da questão da morte. Estrutura similar à dos contos de fada, sendo a morte um dos temas comuns a essa literatura desde Grimm e Perrault, e aqui um diálogo entre a menina e a avó.

FONTES:

"As obras que poucos leram - Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa", artigo de Carlos Heitor Cony - Rio, revista MANCHETE, 4/11/70 --- "O escritor e o vaqueiro", SP, revista NOVA ESCOLA, set./2001.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 04/08/2018
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