O assassinato de Jair Sapateiro
As pancadas eram intermitentes, mas incomodava, Graça marcou o ultimo livro da estante, abriu a portinhola do balcão e andou resmungando. No imenso espaço de pesquisas, as mesas estavam todas ocupadas, na primeira um rapaz de cabelos altos e despenteados, mordia o fundo da caneta, absorto em um grosso livro de Química, ao seu lado uma mocinha muito magra, cabelos lisos com aparência de esticados a força, fazia cálculos numa folha branca, na mesa seguinte um senhor de cabelos grisalhos e percing no nariz, estava com mais três rapazes estudando as perspectivas Brunelleschi, sua voz era suave e dengosa. A mesa que estava no final do salão, ao lado da janela havia dois rapazes e uma senhora, estavam uniformizados, com os nomes bordados no bolso, Graça desceu a escada com o eco das batidas no ouvido, chegou a um corredor escorregadio para alcançar o portão, a rua estava movimentada, garotos do colégio a frente da praça saiam com pressa, alguns de mãos dadas aos pais, outros iam escoltados pelos condutores das Vãs. A pipoca cheirava, no carrinho da Dona Estela havia dependurado alguns balões em formato de animais, seu Clovis do picolé se esforçava para vender, receber o dinheiro e voltar o troco ao mesmo tempo. Um carro buzinou alto, freando em cima de Graça, que olhava displicente o movimento, não precisava atravessar aquela rua, se desculpou com o peito agitado e retornou a calçada, andou mais alguns metros para chegar ao pequeno portão de numero 125, onde se lia numa plaquinha negra de letras brancas, “Sapataria do Jair”. Ela mergulhou a vista em uma das gretas do portão de madeira e perscrutou, o estreito e comprido corredor estava imundo, folhas de Goiabeiras e Amendoeiras, faziam um tapete outonal fora da estação, às paredes da Biblioteca estavam manchadas e danificadas por buracos de pregos. La na frente o pequeno barracão de paredes amarelas onde o velho Jair exercia seu oficio de Sapateiro. Graça bateu algumas vezes, mas a madeira do portão era esponjosa e não ressoava a altura que deveria, forçou com a mão espalmada e no canto esquerdo viu que a pequena taramela estava cedendo, soltou e voltou a empurrar, fazendo com que o portão se abrisse rangendo feito carro de boi. Com passos rápidos e irritados ela foi esmagando folhas, quebrando gravetos mal dizendo a baderna da sapataria. Desde a criação da Biblioteca Municipal, havia sido acordado que ruídos altos, só seriam consentidos até as 13:00 horas, pois a Biblioteca seria aberta das 14:00 ás 22:00 horas. Caso contrário seu Jair, mesmo morando naquele lugar há quase cinqüenta anos, teria que negociar com o Município e procurar outro canto. Graça fora a responsável por um manifesto para a não retirada do sapateiro.
— Logo hoje, seu Jair me apronta! Ah seu Jair! Mas ele vai ouvir! – Esbravejava a passos largos, á medida que se aproximava da porta.
O velho Jair era viúvo da dona Nininha, não tiveram filhos por terem se encontrado depois dos cinqüenta anos, o pequeno barracão de três cômodos se dividia entre; sapataria, sala, cozinha e quarto. Dono de uma freguesia invejável, era tido como o melhor sapateiro da cidade, corria até um boato de que o cantor Roberto Carlos tinha no pé uma obra de arte do seu Jair. Certamente também tinha dinheiro escondido, mas de tão miserável que era, morava naquele pardieiro e andava na rua feito mendigo, comentavam algumas pessoas. Ao lado da porta tinha um couro de boi enrolado, sapatos velhos se amontoavam próximo a uma pilha de lenha. Graça recebeu um vapor quente com cheiro de cola misturado a sangue vindo de dentro, uma maquina de costura com uma tira de napa na agulha, parecia que a costura se interrompera no caminho e a cadeira estava caída, uma bigorna tinha respingos de sangue, e a furadeira estava no chão com a broca totalmente ensangüentada. Ela chamou pelo nome dele, e foi até o meio do cômodo de frente a entrada para os outros aposentos, estava escuro, mas era possível ver um pequeno fogão de quatro bocas com uma panela de pressão sobre ele, uma geladeira antiga com uma borracha amarrando a porta e uma prateleira com algumas vasilhas, logo a frente uma porta fechada, provavelmente seria o quarto. Um vento repentino provocou um ruído grande ao mover as folhas, uma janela dos fundos que estava aberta bateu forte, Graça se assustou e saiu correndo, o vento havia varrido o caminho das folhas e descoberto algumas pegadas de sangue, ela colocou a mão na boca e no peito, virou-se para trás visivelmente atormentada, mas a tempo de perceber que havia uma mão espalmada de sangue do lado de dentro do portão. Fechou como pôde e saiu rezando baixinho, com a sensação de que estava sendo vigiada, enfiou a mão no bolso e retirou uma cartela de Haldol e jogou dois na boca. Na entrada da biblioteca parou e virou-se novamente, havia um homem de óculos escuros do outro lado da rua, com um celular no ouvido, parecia observar os movimentos dela. Graça tirou os sapatos e literalmente correu até chegar a escada, calçou os sapatos e subiu ofegando, passou de cabeça baixa e foi direto a estante que organizava antes de sair. “Será que alguém matou seu Jair, meu Deus?” pensava com as mãos sobre as capas dos livros, “Mas por quê?” Continuou com a mão parada naquela parte da estante se enchendo de interrogações. Havia se formado uma fila na frente do balcão para apanhar livros, as duas atendentes se movimentavam, Graça era a Coordenadora, às vezes ajudava na busca e entrega dos livros, mas não estava em condições naquela hora, posicionou-se num canto entre as estantes de onde poderia acompanhar o movimento, mas sem deixar de se perguntar sobre a morte do sapateiro. Veio à lembrança de pessoas falando sobre um suposto cofre, cheio de dinheiro que o velho escondia, de repente surgiu no meio daqueles que esperavam os livros, o homem de óculos escuros, ele estava na fila, mas olhava friamente para dentro do balcão, Graça o via por entre as lacunas dos livros e sentia que por trás dos óculos ele sabia onde ela estava. Ela se fechou no banheiro, as perguntas voltavam como azia, era incomodo e dava medo, aquelas batidas provavelmente seria do assassino esquartejando o corpo do velho Jair, Graça gostava de ler contos policiais, sabia que com um pouco de experiência, o algoz pode retirar todo o sangue da vitima dentro de uma banheira, depois corta o corpo para desovar noutro lugar. Da janela do banheiro era possível ver os telhados da sapataria, a porta estava fechada, sinal que alguém saiu depois dela. Voltou rapidamente para o interior do banheiro e teve ainda mais receio daquele homem de óculos escuros, quando ele falava no celular do outro lado da rua, poderia estar contatando com o assassino que poderia estar lá dentro cortando o sapateiro. Graça saiu com suor pelo corpo inteiro, voltou ao lugar de observação e não visualizou o homem, agachou-se naquele labirinto de prateleiras e procurou em todas as brechas, mas não encontrou. Foi silenciosamente até a sala das câmeras e monitorou as mesas, lá estava ele, em uma das ultimas, com um livro aberto grifando palavras com o dedo, instantes depois fechou o livro e passou a escrever num caderno, parecia agenda. Graça ampliou o zoom da câmera e pode ler a capa do livro, “Por dentro das mentes criminosas” de Paul Roland, sem os óculos escuros, dava para perceber uma cicatriz pouca acima da sobrancelha dele, também tinha uma aranha tatuada na mão direita. O homem olhou o celular vibrando sobre a mesa e pegou rapidamente, foi até a janela e conversou gesticulando, parecia um maestro de orquestra sinfônica. Depois de desligar o aparelho saiu correndo, sem ao menos voltar à mesa para fazer a devolução do livro. Aquele homem era um suspeito em potencial, pelo que ela conhecia dos contos policiais que lia, ele e outro comparsa mataram o sapateiro e estavam combinando uma fuga para dividirem o dinheiro. Graça sentiu vontade de chorar, seu Jair era sozinho, há pouco perdera a esposa, não merecia aquela morte, o assassino possivelmente dera porretadas na cabeça dele, depois lhe furara com a broca da furadeira, era coisa de arrepiar, ela pensava. Mas tinha que fazer alguma coisa, descobrir mais pistas, para chamar a polícia. Saiu feito louca, passou pela portinhola do balcão e foi direto a mesa em que o homem estava, ele havia esquecido a agenda e alguns papéis rabiscados, na cadeira que se sentou, tinha uma arma dentro do coldre. Era uma PT 840 P que Graça conhecia de um conto de Rubem Fonseca. Olhou para a mesa ao lado e os rapazes estavam concentrados, ela agachou-se e levou a mão com esmero para agarrar a arma, ela achava ser leve pela facilidade que se via atirando na internet, mas pesava quase um quilo.
— Ando com a cabeça nas nuvens! – Falou o homem com seus óculos escuros, soprando nos ouvidos de Graça.
— Só, só, só estava organizando! – Disse com uma palidez aparente, a voz tremula e diminuída.
Graça saiu com as pernas bambas, direto para a sala das câmeras, ampliou o zoom de modo que pudesse monitorar todos os movimentos dele. O celular vibrou, era mensagem ele fez sim, balançando a cabeça digitou alguma coisa. Abriu recomeçou a grifar com os dedos algumas palavras, sem fechá-lo, olhava e escrevia na agenda. Voltaram os pensamentos sobre a morte do velho Jair, tão franzino, não precisava um brutamonte daqueles, usar de tanta violência, ela se fosse o caso bateria fácil no sapateiro, tamanha era sua fragilidade. Mas Graça não estava disposta a deixar barato, tudo indicava que suas suspeitas eram reais, havia visto coisas assim nas páginas de Sherlock Holmes, o crime cometido contra seu Jair, jamais seria como aqueles de Whitechapel em 1888.
— Vocês não vão se safar dessa seus Jacks! – Falou se encaminhando ao telefone.
Graça contou a policia, tudo que subjetivamente ela achava que ocorrera, primeiro foram às pancadas na cabeça, depois a furadeira, provavelmente no coração, em seguida a sangria dentro da banheira, para retirar todo o sangue, por ultimo o esquartejamento e a desova do corpo. O comandante reuniu todos os homens em poucos minutos, dizia se tratar de uma dupla de assassinos cruéis, latrocidas infames que poderiam estar conectados com grupos do eixo Rio/São Paulo. O helicóptero Pegasus deixou a base em direção ao local, Viaturas dos Grupos de operações especiais saíram em comboio, os motoqueiros seguiam na frente como batedores. Graça estava novamente na câmera monitorando o homem, ele olhava fixamente com seus óculos escuros para um grupo de garotos da mesa ao lado, de repente se levanta com a arma engatilhada e aponta para um deles. Graça deu um salto da cadeira.
— Ai meu Deus! Ai meu Deus! Cadê a policia!
O homem havia segurado o rapaz pelo pescoço e apontava a arma para os outros, o salão se agitou e o homem ordenou que todos se calassem, alguns se esconderam debaixo da mesa. Graça ligou novamente para a policia informando o que estava acontecendo, argumentou que desconfiava que alguém da própria policia fosse informante do bandido, e que estava com mais medo ainda, já o que o tal informante dissera que ela havia denunciado. A polícia estava a caminho, mas demorava, o homem breve mataria aqueles rapazes e chegaria até ela, sua inquietude era patológica, coçava os cabelos, mordia as unhas e sentia cólicas. Chegou outro homem e aproximou-se do bandido, Graça tinha convulsões, mas se mantinha de olhos abertos, havia matado a charada, aquele era o comparsa, provavelmente o que matara o sapateiro. Era com ele que o de óculos escuros falava a todo instante, e ela sabia que os garotos não passavam de pretexto para chegarem até, ela era o alvo. De repente ouviram-se as sirenes cantando na rua, ruídos de um helicóptero pousando sobre a biblioteca, Graça não se continha de tamanha aflição, já estava sem o sutiã com a blusa totalmente aberta, pulava sem parar, os policiais apareceram ela vibrou de alegria, na frente vinha a ROTAM e o GOE com um enorme escudo, chegou perto dos homens, falaram com eles durante algum tempo, pareciam se conhecer. Graça gritava implorando que prendessem os homens, loucamente em surto arrancou toda a roupa, ao ver que os policiais se dirigiam ao balcão, teve a certeza de que estavam juntos naquele crime. Graça não queria ser morta, por isso correu nua com as roupas na mão e atirou-se da janela do banheiro, caindo no estreito quintal do velho Jair. Este que voltava do hospital com um curativo na mão, após um acidente com a furadeira, quando montava um suporte de pendurar sapatos. Graça era gordinha, pesava quase noventa quilos e caiu sobre ele, que quebrou o pescoço, morrendo na hora. Amortecida a queda, ela quebrou apenas um dos braços e fraturou o tornozelo direito, além de cortes superficiais na bunda e na testa. O homem dos óculos escuros era Policial Civil, ele e o outro. Estavam investigando uma quadrilha de rapazes que roubavam na praça e se fingiam de estudantes na Biblioteca.