O PROJETISTA-CONSTRUTOR

Aqui em casa, eu e minha mulher vivemos sozinhos. Para não dormirmos com a barriga cheia costumamos fazer uma refeição leve, por volta das vinte horas, e a fazemos na cozinha mesmo, em uma mesa junto à parede que fica há uns três ou quatro palmos do meu nariz.

A pintura da parede é do tipo corrugado e enquanto preparo meu lanche costumo dar uma olhada na mesma e me permito a divagações. Nesse clima, a cada centímetro da parede, é possível discernir um monte de carantonhas que parecem querer dizer alguma coisa.

São narizes em profusão, uns aduncos, outros afinados e, ainda, mais outros achatados... Também ficam visíveis, alguns pares de olhos, desde os normais até os vesgos. Uma vez, não sei qual a razão, e somente uma vez, consegui ver, bem rápido, um par de olhos todo fora do esquadro, iguaizinhos ao do malfadado Cerveró. Por mais que tente a reprise, não consigo localizar tal coisa...

Também dá para ver algumas orelhas e faces deformadas que completam as fisionomias que o fantástico traz à cena.

Hoje tive a atenção voltada para um movimento quase imperceptível na tal parede. Fixando bem os olhos, pude identificar uma minúscula formiga que caminhava celeremente em direção ao lado direito da minha visão. Em dado momento encontrando-se com uma outra da espécie, vinda do sentido inverso, deu uma ligeira parada como se a estivesse cumprimentando ou dando-lhe algum recado ou aviso sobre o que poderia encontrar lá do lado de onde estava voltando.

A formiga parecia saber exatamente para onde estava se dirigindo, o que foi fazer do lado contrário e o que dizer à sua companheira na linguagem de toques ou sei lá de quê.

Foi aí que senti o estalo lá dentro da minha cuca. Meus miolos começaram a elucubrar coisas, por que não dizer, também fantásticas. Se as duas formigas pararam para se cumprimentar, dar e receber recado ou seja lá o que for, isso deve ter um mecanismo que seja disparado para efeitos incríveis.

Afinal esse tipo de comportamento indica que aquele ínfimo ser, dentro daquela cabecinha, tem um cérebro! Isso mesmo, pessoal, tem um cérebro! Por extensão também deve ter seus sistemas digestivo, nervoso, reprodutor etc... etc...

Não é preciso consultar um entomologista para descobrir essas coisas. Todavia é imaginar como tudo isso poderia caber dentro daquele corpúsculo que sequer chega a ultrapassar a linha de um milímetro de comprimento! Como suas patinhas possibilitam um andar rápido e cheio de mudanças de direção? Que mecanismo fantástico atua naquele ínfimo inseto para que o mesmo, sem qualquer cerimônia, mostre a todo mundo a sua importância como ser vivo?

Todo o comportamento observável teve sua origem num cérebro que, não entendo como, pode estar dentro daquela cabeça quase invisível. Entendendo ou não, o fato é que ele existe, está lá e funciona melhor do que muitos dos cabeçudos dentre nós, seres humanos...

Mas, as elucubrações não pararam por aí. Avançaram um pouco mais e assumiram as raias do inacreditável. Que engenharia foi aplicada para que todo esse milagre da vida fosse exequível? Como sair do projeto e se transformar em gritante realidade?

Especialistas afirmam que não humanos atuam mobilizados pelo instinto, pois não tem consciência nem arbítrio. Apenas agem pela conservação da própria vida e da espécie. Leigos que somos temos que concordar com a posição de quem entende do riscado mas não podemos deixar de, através do comportamento da ínfima formiga, perceber a nossa incapacidade de sequer dimensionar a grandeza do projetista-construtor daquela maravilha na minha parede da cozinha.

Terminado o lanche, vim para o computador colocar no papel minha viagem mental deste domingo, último domingo de agosto. A formiga, impávida, seguiu sua caminhada pela vida e desapareceu do meu campo de visão. Fiquei absorto pensando na magnificência do seu Projetista-Construtor...

Amelius

29/08/2018

Amelius
Enviado por Amelius em 01/08/2018
Reeditado em 18/01/2020
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