Estranhezas
O despertador tocou e busquei na memória as obrigações do dia. Nada mal para quem dormiu às 3h e foi empurrado para fora da cama por aquele barulho ensurdecedor do despertador às 5h15. Sim, o despertador fica a uns 3 metros da cabeceira da cama. Tudo isso para induzir o sono a deixar este corpo que não lhe pertence e neste exercício matinal, provocar o organismo a se despertar para o dia que nasce.
Hoje não seria diferente. Algumas reuniões para entediar a alma. Uma consulta com o médico do trabalho para responder aquelas perguntas idiotas onde todos dizem “não”, “não tive isso... não tive aquilo”, claro, com o objetivo de ser aprovado e ter o emprego, aliás, artigo raro neste país de merda. Por fim, uma entrada no banco para consultar o extrato desejoso de não visualizar o sinal de negativo na frente dos números.
Na crise que se vive, evitando aumentar os números no vermelho, deixei de lado o Uber e caminhei alegremente até a estação do metrô. Afinal, é apenas R$ 1,80 o bilhete unitário, além do mais, caminhar é algo que faz bem para a saúde. Então, com o sorriso estampado no rosto desci a avenida que levava a estação do trem.
Já na plataforma, deparei-me com a primeira estranheza do dia. Um senhor de cinquenta e poucos anos, encurvado, olhando um celular do século passado, andava de um lado para o outro. Enquanto uma mão segurava aquele aparelho que deduzi ser um telefone, a outra, compulsivamente, acertava a camisa branca com listras cinza que de modo algum colaborava para embelezar aquele homem. Se num primeiro momento este sujeito despertou meu olhar por apresentar um comportamento já estereotipado, o que eu estava para presenciar seria ainda mais estranho.
Guardando aquele aparelho pré-histórico no bolso e no desejo compulsivo de preencher o vazio das mãos ele retira uma calculadora, não sei de onde, mas que funcionava, pois suas contas eram ditadas em voz alta e os dedos ágeis, acompanhavam sua fala com maestria, como uma orquestra segue os movimentos do maestro. Naquele instante me veio à mente uma proposição: não confie em homens que andam com calculadoras. Talvez seja porque nunca confiei naquele agiota que seguia os passos de meu pai com sua calculadora em mãos e uma caderneta vermelha. Sempre temi ver o nome dele ali. Não obstante acredito que tenha estado naquelas linhas, registrado por algum tempo, algum valor que foi acrescido de modo injusto por aqueles dedos hábeis em cálculos.
Desviei o olhar e me concentrei no trem que chegava. As portas se abriram e ao entrar dou-me conta que aquela voz era familiar. O homem cinquentenário, de camisa listrada e calculadora em mãos, entrou no mesmo vagão que escolhi e atrás de mim dizia: vou sentar-me ali para fazer mais contas. Era estranheza demais para minha cabeça racional. Quanto mais olhava para aquele homem, mais eu me questionava sobre os propósitos de seus cálculos. Estaria ele revendo seus dados da conta bancária? Estaria calculando os juros da poupança ou LCI? Checava os valores de aluguéis e outros benefícios? Jamais saberia. Procurei concentrar-me no livro que tinha em mãos, afinal, não se leva um calhamaço de páginas para não ser lido, correto?
Foi em vão. O trem tinha chegado na próxima estação. De onde eu estava era possível ver as pernas de quem entrava no trem sem desviar demais o olhar das páginas do livro. Eles se fixaram nas pernas tatuadas de um homem que adentrou aquele vagão. Bermuda marrom claro e botas na mesma cor compunham melhor a estética do que aquela do homem da calculadora. Claro, isso se eu tivesse mantido os olhos naquele nível. Parei no meio do parágrafo, marcando alguma palavra que permitiria retomar a leitura com facilidade. Levantei a cabeça e fixei o olhar. Fui tomado pela segunda estranheza do dia.
Bem na minha frente estava aquele homem de uns trinta e poucos anos. Corpo tatuado, cabelo esvoaçado e um bigode, sim um bigode estilo vintage misturado com Salvador Dalí. Na ponta, notava-se o excesso de gel ou outro produto utilizado para dar aquela voltinha. Desviando o olhar e questionando minha sanidade mental, procurei outros olhares que pudessem estar vendo o mesmo que eu. Foi em vão. Ocupados demais com seus celulares, todos os passageiros daquele trem não tinham percebido a excentricidade daquele sujeito. Logo me veio à mente uma questão: se ele pode, porque eu não posso? Sempre quis usar um bigode, mas sempre fui consumido pelo olhar crítico dos outros, mesmo sem nunca ter experimentado manter um. O meu bigode não chegaria aos pés daquele homem de trinta e poucos anos, mas teria um certo charme e seria menos chamativo, é claro.
Retomei minha leitura. Demorou um pouco até que eu encontrasse a palavra, mas tudo fluiu enquanto eu dividia a atenção entre o livro, o homem da calculadora e a curva do bigode. Fui advertido pelo sinal de voz no autofalante que indicava minha estação. Desci na certeza de que já tinha visto muito no mesmo dia.
O tempo não é aliado de ninguém e eis que chega o momento do retorno para casa. Tirando as moedas do bolsinho da calça consigo contar os R$ 4,05 necessários para o bilhete. O primeiro ônibus passa. Não entro, apesar de ter lugar. Ele me deixaria um ponto antes do que eu costumo descer. Minha caminhada já tinha sido completada por hoje e evitar passos extras estava nos meus planos. Aguardei o Move 5401. Foram apenas alguns minutos entre um ônibus e o outro, tempo suficiente para fechar o meu livro e fixar o olhar naquela garota de cabelo curto, tipo skinhead (mas não raspado totalmente – curto) que parou em frente a mim com seu fone de ouvido pra lá de exótico. Interessei-me pelo design do mesmo e fui acompanhando a curvatura do fone até chegar na orelha onde meus olhos se depararam com o brinco daquela jovem de vinte e poucos anos.
Um clipe de papel listrado de azul e branco foi passado no furo de sua orelha. Na ponta do clipe uma cruz verde, retirada daqueles terços de plásticos que ganhamos nas missões religiosas. Interessante é que os terços que chegam naqueles pacotes de plásticos fechados com 50 unidades, são sempre azul ou rosa. Verde eu nunca vi.
Ela retirou o fone de ouvido e ficou ainda mais evidente aquele apetrecho. Inúmeras dúvidas passaram pela minha cabeça, tipo o que leva uma pessoa a colocar uma cruz verde num clique azul e branco e finca-lo na orelha como acessório? E outras questões que prefiro silenciar. Enfim, era estranheza demais para um dia só. Coloquei o livro debaixo do braço. Retirei o celular do bolso e registrei. Fiquei com medo de contar e ninguém acreditar.
Entrei no ônibus e ela também. Sua cabeça sacudia pra lá e pra cá. Não era o movimento daquele veículo que proporcionava o balançar cadenciado da jovem moça, era sim o som que ela ouvia. Imersa no seu mundo, como estavam o homem da calculadora e o homem do bigode. E eu ali, fora do meu mundo observando aquilo que não me diz respeito. Talvez seja desleixo com o meu mundo interior. Se estivesse focado nele, poderia ser mais livre como estes três sujeitos estranhos que me fizeram sentir a pessoa mais estranha do mundo.
Hoje não seria diferente. Algumas reuniões para entediar a alma. Uma consulta com o médico do trabalho para responder aquelas perguntas idiotas onde todos dizem “não”, “não tive isso... não tive aquilo”, claro, com o objetivo de ser aprovado e ter o emprego, aliás, artigo raro neste país de merda. Por fim, uma entrada no banco para consultar o extrato desejoso de não visualizar o sinal de negativo na frente dos números.
Na crise que se vive, evitando aumentar os números no vermelho, deixei de lado o Uber e caminhei alegremente até a estação do metrô. Afinal, é apenas R$ 1,80 o bilhete unitário, além do mais, caminhar é algo que faz bem para a saúde. Então, com o sorriso estampado no rosto desci a avenida que levava a estação do trem.
Já na plataforma, deparei-me com a primeira estranheza do dia. Um senhor de cinquenta e poucos anos, encurvado, olhando um celular do século passado, andava de um lado para o outro. Enquanto uma mão segurava aquele aparelho que deduzi ser um telefone, a outra, compulsivamente, acertava a camisa branca com listras cinza que de modo algum colaborava para embelezar aquele homem. Se num primeiro momento este sujeito despertou meu olhar por apresentar um comportamento já estereotipado, o que eu estava para presenciar seria ainda mais estranho.
Guardando aquele aparelho pré-histórico no bolso e no desejo compulsivo de preencher o vazio das mãos ele retira uma calculadora, não sei de onde, mas que funcionava, pois suas contas eram ditadas em voz alta e os dedos ágeis, acompanhavam sua fala com maestria, como uma orquestra segue os movimentos do maestro. Naquele instante me veio à mente uma proposição: não confie em homens que andam com calculadoras. Talvez seja porque nunca confiei naquele agiota que seguia os passos de meu pai com sua calculadora em mãos e uma caderneta vermelha. Sempre temi ver o nome dele ali. Não obstante acredito que tenha estado naquelas linhas, registrado por algum tempo, algum valor que foi acrescido de modo injusto por aqueles dedos hábeis em cálculos.
Desviei o olhar e me concentrei no trem que chegava. As portas se abriram e ao entrar dou-me conta que aquela voz era familiar. O homem cinquentenário, de camisa listrada e calculadora em mãos, entrou no mesmo vagão que escolhi e atrás de mim dizia: vou sentar-me ali para fazer mais contas. Era estranheza demais para minha cabeça racional. Quanto mais olhava para aquele homem, mais eu me questionava sobre os propósitos de seus cálculos. Estaria ele revendo seus dados da conta bancária? Estaria calculando os juros da poupança ou LCI? Checava os valores de aluguéis e outros benefícios? Jamais saberia. Procurei concentrar-me no livro que tinha em mãos, afinal, não se leva um calhamaço de páginas para não ser lido, correto?
Foi em vão. O trem tinha chegado na próxima estação. De onde eu estava era possível ver as pernas de quem entrava no trem sem desviar demais o olhar das páginas do livro. Eles se fixaram nas pernas tatuadas de um homem que adentrou aquele vagão. Bermuda marrom claro e botas na mesma cor compunham melhor a estética do que aquela do homem da calculadora. Claro, isso se eu tivesse mantido os olhos naquele nível. Parei no meio do parágrafo, marcando alguma palavra que permitiria retomar a leitura com facilidade. Levantei a cabeça e fixei o olhar. Fui tomado pela segunda estranheza do dia.
Bem na minha frente estava aquele homem de uns trinta e poucos anos. Corpo tatuado, cabelo esvoaçado e um bigode, sim um bigode estilo vintage misturado com Salvador Dalí. Na ponta, notava-se o excesso de gel ou outro produto utilizado para dar aquela voltinha. Desviando o olhar e questionando minha sanidade mental, procurei outros olhares que pudessem estar vendo o mesmo que eu. Foi em vão. Ocupados demais com seus celulares, todos os passageiros daquele trem não tinham percebido a excentricidade daquele sujeito. Logo me veio à mente uma questão: se ele pode, porque eu não posso? Sempre quis usar um bigode, mas sempre fui consumido pelo olhar crítico dos outros, mesmo sem nunca ter experimentado manter um. O meu bigode não chegaria aos pés daquele homem de trinta e poucos anos, mas teria um certo charme e seria menos chamativo, é claro.
Retomei minha leitura. Demorou um pouco até que eu encontrasse a palavra, mas tudo fluiu enquanto eu dividia a atenção entre o livro, o homem da calculadora e a curva do bigode. Fui advertido pelo sinal de voz no autofalante que indicava minha estação. Desci na certeza de que já tinha visto muito no mesmo dia.
O tempo não é aliado de ninguém e eis que chega o momento do retorno para casa. Tirando as moedas do bolsinho da calça consigo contar os R$ 4,05 necessários para o bilhete. O primeiro ônibus passa. Não entro, apesar de ter lugar. Ele me deixaria um ponto antes do que eu costumo descer. Minha caminhada já tinha sido completada por hoje e evitar passos extras estava nos meus planos. Aguardei o Move 5401. Foram apenas alguns minutos entre um ônibus e o outro, tempo suficiente para fechar o meu livro e fixar o olhar naquela garota de cabelo curto, tipo skinhead (mas não raspado totalmente – curto) que parou em frente a mim com seu fone de ouvido pra lá de exótico. Interessei-me pelo design do mesmo e fui acompanhando a curvatura do fone até chegar na orelha onde meus olhos se depararam com o brinco daquela jovem de vinte e poucos anos.
Um clipe de papel listrado de azul e branco foi passado no furo de sua orelha. Na ponta do clipe uma cruz verde, retirada daqueles terços de plásticos que ganhamos nas missões religiosas. Interessante é que os terços que chegam naqueles pacotes de plásticos fechados com 50 unidades, são sempre azul ou rosa. Verde eu nunca vi.
Ela retirou o fone de ouvido e ficou ainda mais evidente aquele apetrecho. Inúmeras dúvidas passaram pela minha cabeça, tipo o que leva uma pessoa a colocar uma cruz verde num clique azul e branco e finca-lo na orelha como acessório? E outras questões que prefiro silenciar. Enfim, era estranheza demais para um dia só. Coloquei o livro debaixo do braço. Retirei o celular do bolso e registrei. Fiquei com medo de contar e ninguém acreditar.
Entrei no ônibus e ela também. Sua cabeça sacudia pra lá e pra cá. Não era o movimento daquele veículo que proporcionava o balançar cadenciado da jovem moça, era sim o som que ela ouvia. Imersa no seu mundo, como estavam o homem da calculadora e o homem do bigode. E eu ali, fora do meu mundo observando aquilo que não me diz respeito. Talvez seja desleixo com o meu mundo interior. Se estivesse focado nele, poderia ser mais livre como estes três sujeitos estranhos que me fizeram sentir a pessoa mais estranha do mundo.