De volta à máquina
Hora do almoço. Dirijo-me àquele self-service onde a comida é boa e o preço é honesto. Já deve estar cheio. Cheiro de comida e som de liquidificador. Faço o meu prato. Sento-me perto da janela. Vejo o semáforo autorizando a passagem. Pessoas apressadas. Mais clientes.
Não foi no brilho do olhar que te reconheci. Foi antes. Algo em minha alma ondulou. Minha cabeça virou-se automaticamente procurando não sei o quê. Era você. E eu ali com outro corpo, outro rosto, outra vida. Deve ter sido muito intenso o que senti por você pois me lembrava de ti, apesar dos séculos. Mas alguma coisa se perdeu. Não te lembravas de mim. E ali estávamos nós dois. Pediu para sentar-se ali ao lado. O lugar estava desocupado. Não haviam mesas livres. Aquiesci. Que assunto eu deveria puxar para tentar acender alguma lembrança em tua alma? Como fazer para não ser invasivo, não parecer um louco, ocultar o misto de emoção e desespero. A lâmpada fluorescente zumbia e junto com o burburinho das outras mesas e o barulho de talheres me desconcentrava. E eu poderia ter falado o nome dos nossos filhos, o nome da tua mãe, ou da casa com varanda na frente onde olhávamos a mata ao longe. Precisava comer. Não pela fome que havia ficado para segundo plano. Apenas para parecer o mais normal possível. Uma garfada lenta e calculada. Mastigar, engolir; uma eternidade! Seus cabelos estavam tão diferentes, mas o nariz, o sorriso e os olhos ainda tinham alguma coisa que fazia minhas mãos estremecerem. As escondi momentaneamente por baixo da mesa.
-Cuir fòn gu na minn dhachaigh. Tha an oidhche a 'tighinn (*)- cantei baixinho.
- Perdão? Falou comigo?
- Não. Estava tentando lembrar uma canção antiga... Hoje a comida até que está boa, não?
- Está sim, mas não me parece que você está gostando. Está comendo tão devagar...
Gostaria que aquele prato de comida durasse para sempre. Mas a comida esfriava rapidamente. Será que nos encontraríamos de novo? Precisava criar algum vínculo rápido:
- Deixe-me me apresentar. Meu nome é Arthur e eu trabalho com reformas. Pinturas, reparos hidráulicos e elétricos, rebaixamento de gesso e dry wall. Você vem sempre almoçar aqui?
- Meu nome é Amanda, prazer Arthur, bom saber que você trabalha com reformas. Meu pai está precisando reformar um apartamento para alugar. Você pode me dar seu telefone?
Não era muito bem o que eu tinha em mente, mas:
-Tenho um cartão aqui comigo. Fique com ele. Nach cuimhnich thu? (**)
-Ah obrigada! Não sei do quê exatamente eu deveria me lembrar?
-Bryan e Lana. Lembra deles?
-Não faço a menor idéia de quem sejam! Já nos encontramos antes?
-Acredito que já faz muito tempo, mas se você forçar um pouco talvez se lembre...
-Ai meu Deus! Estou me lembrando!
-Sério?
-Estou me lembrando que eu costumo ser para-raio de maluco e se isso foi uma cantada foi ridícula! Sou uma mulher muito bem casada, tenho dois filhos e já acabei de almoçar. Adeus!
Talvez Bryan e Lana estivessem com ela novamente. Nunca saberei.
-Tha mi gad ghràdh gu bràth.(***)
-Sai fora! Se me seguir eu vou chamar a polícia!
-Não vou te seguir Amanda. Vá com Deus!
Talvez ela sonhe hoje à noite com um rosto que ela nunca viu, um homem de barbas ruivas e olhos verdes, e rochas negras e vento frio e uma casa de madeira. Tantas vezes sonhamos com rostos desconhecidos...
*Cuir fòn gu na minn dhachaigh. Tha an oidhche a 'tighinn - Chame as crianças para casa. A Noite está chegando.
**Nach cuimhnich thu? - Você não se lembra?
***Tha mi gad ghràdh gu bràth.- Eu te amo pra sempre