DIANTE DO CORPO
Um dia...Pronto! ...Me acabo.
Pois seja o que tem de ser.
Morrer: Que me importa?
O diabo é deixar de viver...
Mario Quintana.
Depois da pancada seca que recebeu no crânio, de força monstruosa, ele não entendeu como não havia lhe rompido as têmporas, fraturado sua testa ou esmagado seu crânio por inteiro.
Daí em diante tudo foi escuridão. Por intermináveis minutos, não enxergava nada a sua frente. Foi tamanha a cegueira que nem aquilo que se vê, quando se está de olhos fechados ele viu. Nem aquelas nuvens escuras e esfumaçadas que flutuam feito poeira entre os olhos e as pálpebras ele viu.
O atordoamento foi de tal forma gigante que em alguns momentos não saberia distinguir se o que sentia era sonho ou realidade, se as sensações eram dele ou se chegavam de fora batendo em seu corpo como um vento quente.
Sentiu calafrios estranhos, algo que jamais tinha sentido. Uma sensação de não pertencimento e de ausência dele mesmo onde quer que estivesse.
Olhava as pessoas que transitavam ao seu redor e assustava-se pelo fato de jamais ter vivido algo semelhante, e que lhe causava pânico por achar que por traz daquilo se escondia algo pior.
As pessoas não o viam! Passavam próximos a ele sem vê-lo, como se ali não tivesse ninguém, como se ele jamais tivesse estado ali.
Um vácuo ao seu redor. Pensou mil coisas. Começou a rir achando estar dentro de um de seus sonhos mirabolantes e fantásticos daqueles que sempre sonhava quando se excedia nas bebidas. Era isso então! Nada daquilo estava acontecendo realmente. Bebera demais e começou a alucinar. Que, diabos, deveriam ter colocado na bebida? Eu bem que havia desconfiado daquele garçom, ele parecia muito estranho. Com certeza deve ter posto alguma droga alucinógena em meu copo. Só poderia ser isso. Não era.
Não bebera nada, isso lembrava claramente. Fazia tempo que não bebia. Mas que explicação teria para aquilo tudo que estava acontecendo?
Em meio a algazarra desvairada que o desacorçoava ele observa um movimento próximo de si, começa a tomar noção da situação em que se acha, a realidade absurda que vivia.
Aproxima-se das pessoas e no meio da multidão ele assusta-se como todos os outros diante de um cadáver estirado de bruços no chão. A princípio não reconhece quem poderia ser, mas o achava familiar, parecendo ser alguém de sua relação mais íntima.
Conheceu a roupa, familiariza-se com o cabelo, com a anatomia do corpo, a tonalidade da pele, a forma da cabeça, o comprimento dos braços, o tamanho do pé. Aproxima-se do corpo a ponto de sentir o cheiro do perfume que usava, por fim apalpa o defunto e um terror o envolve de uma forma pavorosa e assustadora.
Não! – Ele grita.
Aquilo não estava acontecendo. Belisca seu braço na certeza de acordar do infame pesadelo. Mas parecia tudo tão real que somente as pessoas não o enxergavam nem horrorizavam-se com o que viam. Se acordasse, teria passado pela experiência mais louca que tivera notícias.
Ainda em pé, observava seu próprio corpo, inerte, estirado no chão.
Corria, de sua cabeça amassada, um fio de sangue escuro que, graças a força da gravidade, deslizava por um vinco do chão até cair em grossas gotas coaguladas de odor característico e espessura semi pastosa pelo meio fio, perdendo-se na sarjeta da calçada em que jazia.
Tudo causou-lhe náuseas.
Encheu-se de dúvidas. Como podia? Observar seu próprio corpo, morto no chão? E todas as leis da biologia e das ciências? E a religião o que pronunciaria a respeito disso tudo?
As horas foram passando uma após a outra e logo viu-se já com o dia claro. Ele em pé e seu corpo na mesma posição, no chão. O sol forte fustigava o cadáver fazendo com que ele mostrasse o mais típico sinal da decomposição da carne: O fedor insuportável de podre.
Ele chora, grita de raiva e pavor.
- Porque eu não morro por inteiro? Se meu corpo apodrece no chão porque eu ainda permaneço vivo – Que mente diabólica e sádica arquitetaria tamanho horror? O que eu fiz para me encontrar nesse estranho transe? Que droga me faltou beber?
Quem sabe, então, a morte seja assim mesmo, só o que morre é o corpo. Como saber se não lembramos das nossas outras mortes?
Se estava meio morto, meio vivo como seria daqui para frente? Se fosse trancafiado no espaço apertado e frio de um esquife seria horrível, mas pior se ficasse perambulando pelas ruas por entre os vivos, sem ser visto, sem ser notado. Sem ser lembrado
Ele de pé, seu corpo no chão, a dúvida dilacerando seus pensamentos.
Se já havia morrido, porque permanecia vivo, se ainda vivia porque seu corpo deteriorava-se no chão?
Nunca, em toda sua vida, desejou tanto morrer por inteiro.