Visita noturna ao cemitério
Todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite. Eu, por exemplo, esperava estar no cemitério de Curitiba – de preferência, vivo. Há algum tempo, eu já vinha acompanhando com curiosidade o rebuliço provocado pelas “visitas guiadas” ao cemitério. Cada vez mais populares e concorridas, essas visitas já haviam se tornado um programa turístico, no mínimo, diferente. Há as visitas de dia, às quais eu já poderia ter ido, mas preferi que a minha primeira vez fosse durante a noite. Ir ao cemitério à noite! É uma evolução e tanto para quem, até a adolescência, ficava muito impressionado com os cemitérios a que ia e depois não conseguia nem dormir.
Era uma noite de Lua Cheia, um dia após o Eclipse. Clarissa diz que a Lua está mais bonita do que no dia anterior. Vemos Marte, logo acima. São mundos distantes e encerram mistérios tão grandes como a morte. Clarissa é a nossa guia, Clarissa é a guria do cemitério. Não pensem que a visita se resume a entrar lá e ver os túmulos de umas personalidades locais. De início, recebemos uma aula, uma aula a que nada pagamos, sobre a evolução da maneira como as sociedades lidam com os seus mortos. Desde a antiguidade, do tempo em que todos eram sepultados em suas próprias casas e os vivos tinham que viver para os seus mortos.
Mais tarde levaram os mortos para longe da cidade, mas depois trouxeram de volta e começaram a sepultá-los no interior ou no adro das igrejas. Clarissa menciona as igrejas de Curitiba no início dos anos 1800, e eu penso no meu ancestral Domingos Soares Fragoso, morto em 1819 e sepultado na Igreja do Rosário. Esse hábito se mostrou pouco salubre, gerador de diversas epidemias. Vieram leis, decretos, posturas para levar os mortos de volta para longe das cidades, mas só a muito custo é que a população se acostumou com essa ideia dos cemitérios.
E Clarissa vai contando para que saibamos melhor o que significa aquele lugar em que estamos prestes a entrar em uma noite de Lua Cheia. O cemitério é um microcosmos, o cemitério é uma outra cidade e tudo o que existe do lado de fora repercute do lado de dentro. Entramos, somos apresentados àquela cidade. Clarissa vai nos conduzindo por entre os túmulos, vai explicando o que é que nós estamos vendo, porque nós, cegos de morte, já não conseguimos enxergar nem ouvir tudo o que um cemitério tem a nos oferecer. Ela fala sobre as tipologias dos túmulos, fala sobre as pedras usadas, sobre símbolos, costumes, pessoas e histórias. Se apontássemos um túmulo qualquer no meio de todos, ela teria algo a nos contar, tal é a sua desenvoltura. Ela conhece, e isso não é exagero, até os urubus que vivem no topo de um dos mausoléus.
Os olhos de Clarissa brilham com aquele fulgor que só os apaixonados têm. Percebe-se que aqueles mortos são a sua vida. Ela trabalharia de graça por eles, como de fato trabalhou, no início dos seus projetos. Até que a prefeitura teve que se curvar à realidade de que ninguém na cidade conhece melhor aquele cemitério do que ela. Hoje o cemitério é a sua profissão, hoje ela consegue viver daquilo que nasceu para fazer. E é sempre um lindo espetáculo, e muito raro, quando a gente vê a pessoa certa no lugar certo. Clarissa no cemitério é plena e absoluta. Os mortos – estou certo – gostam dela e a ajudam. Se quer encontrar um morto e não sabe onde está sepultado, entre 80 mil pessoas, o morto sopra várias dicas no seu ouvido até ser achado.
Passamos por Maria Bueno, pelo Barão do Serro Azul, por diversas personalidades que hoje são nome de rua, e também por alguns anônimos em vida que ganharam a sua celebridade depois da morte, graças aos ouvidos de Clarissa, bastante atenta ao que os túmulos tinham a dizer. São três horas de passeio e, vou dizer, são poucas. O ideal seria que fôssemos internados no cemitério por uma semana. Clarissa aponta o local onde ela própria estará quando fizer parte da cidade dos mortos. Quando isso acontecer, não será exagero dar ao cemitério o nome de Clarissa Grassi. São Francisco de Paula que me perdoe, mas ela fez mais por aquele cemitério.