AS DUAS CRUZES
As Duas Cruzes
- Por que têm esses duas cruzes aqui, juntinhas, papai? ...
Sempre que passava naquela estrada o menino Zanatto olhava para as cruzes no barranco e ficava curioso, imaginando o que poderia ter acontecido ali. A morte era mistério para ele, e esse menino gostava de matutar. Mas as maneiras como as pessoas morriam lhe despertava mais curiosidade.
Zanatto era mesmo um menino diferente dos demais em sua idade. Com apenas 11 anos e já cursando o quarto ano escolar em pleno ano 1966, ele era muito aplicado e considerado pela escola menino prodígio. Suas notas eram as melhores da classe e uma das três melhores de todas as escolas da sua região. A biblioteca da cidade o elegeu maior leitor da década. Ele lia mais de 60 livros por ano e isso equivalia a mais de um livro por semana.
Era um feriado nacional e seu pai o levou para visitar seu padrinho em outra vila distante e mesmo viajando a cavalo, eles voltaram tarde, passando já de noite pelas cruzes da estrada.
- Porque duas pessoas morreram nesse local, meu filho! Foi a resposta do pai.
Zanatto gostava de dialogar com seu pai porque ele tinha paciência para lhe dar resposta para cada pergunta. O menino tinha a faculdade de guardar a maior parte de tudo que via, lia, ouvia e aprendia. Ele já tinha perguntado para outras pessoas sobre as tais cruzes, mas as pessoas questionadas não tiveram respostas suficientes para lhe matar a curiosidade. A imaginação fervia e a intriga de possibilidades teimava em sua mente inteligente. Mas agora ele sabia que tudo seria esclarecido por seu amigo e pai. Esperou tranquilo.
Olhando para o céu, tentando localizar algumas constelações conhecida, o garoto deixou seu cavalo a passo lento enquanto aguardava as manifestações de seu progenitor.
O pai logo percebeu a intenção do filho e não se fez de rogado. Soltou as rédeas do seu animal e deixou cair no cabeçalho da sela. Suspirou forte, passou a palma da mão na boca para alisar seu grande bigode negro e disse:
- Todo católico quando morre, ganha uma cruz de identificação em sua sepultura, mas o que morre em viagem ganha, geralmente, duas cruzes. Explicou.; – uma em local de sua morte e outra no cemitério. – Concluiu.
Mas o menino quis saber de seu pai se os falecidos eram parentes e se morreram por acidente automobilístico, ou até mesmo se foram devorados por alguma fera. Seus coleguinhas viviam dizendo que antes tinha muita onça e lobos naquelas paragens. Eles falavam até de enormes cobras voadoras.
O pai achou muita graça no comentário do pequeno e disse que nada disso era verdade. Dedicou o resto da viagem contando a estória das cruzes.
– Essas cruzes estão juntas, mas seus contemplados não morreram no mesmo dia. – Aconteceu assim:..
(“ – A minha mãe contou para os meus irmãos e para mim, que um fazendeiro resolveu refazer a cerca que demarcava o limite de suas terras no confronto com seus vizinhos e a coisa resultou numa confusão danada, onde ele perdeu a amizade de um vizinho e compadre seu.
A antiga cerca era na beira do barranco da estrada que ficava uns 30 metros mais para cima. Velha e esquecida, essa cerca caiu e se acabou com o passar dos dias e estações dos anos.
Quando o Governo Municipal mandou seus maquinistas abrirem novas estradas, aconteceu uma pequena mudança naquele ponto geográfico e a estrada nova foi aberta um pouco mais para baixo, onde é até hoje.
O Fazendeiro ( vamos de chama-lo de *A ) um certo dia pegou suas ferramentas e resolveu construir uma cerca nova e mesmo conhecendo as marcas dos limites de sua terra, fez a cerca na beira da estrada, invadindo uma faixa de terra se seu vizinho e compadre. A coisa ficou feia quando o Fazendeiro *B procurou seu vizinho para reclamar do seu erro de divisa. Os dois se desentenderam e o Senhor *B jurou desmanchar a cerca e a recolocar na sua antiga e verdadeira marca.
Alguns dias se passaram e quando parecia estar tudo bem, o Fazendeiro B voltava de uma viagem, a noite, quando foi baleado na estrada. Pessoas que entendiam de armas de fogo concordaram em que o infeliz foi atingido por um tiro de cartucheira calibre 28 carregada com pidigoto*. Como o Senhor B era pessoa boa e mui querida por todos, não se chegou a suspeito algum. Parecia que não existia ninguém nesse mundo que tivesse motivo ou intenção de matá-lo.
Mas a viúva tinha contado para as pessoas mais íntimas da família sobre a briga se seu marido com o Senhor A por causa da indevida mudança da cerca. Forte suspeita caiu como luva na pessoa do tal vizinho, mas por falta de prova o assunto foi deixado de lado “sem queixa formal”, arquivado pela lei e esquecido.
Uma cruz de madeira foi colocada no barranco da estrada, no local da tragédia e as pessoas se acostumaram com aquele símbolo acrescentado à paisagem. ”)
O pai do garoto se calou e abriu a porteira para que ambos passassem. Estavam nesse momento tomando um trilho de gado como atalho para cortar caminho.
O menino olhou para o céu bem a tempo de ver uma estrela cadente cortando os ares. Os dois iniciaram descida por uma encosta da montanha e seu pai voltou à narração.
- Depois de alguns anos aconteceu algo que causou grande espanto nos vizinhos que ficaram pasmos. Por muito tempo o assunto foi citado e discutido por muita gente. Os mais fervorosos ou beatos acreditaram até em castigo. – Mamãe nos contou que a coisa de deu bem assim:
(“ – O Senhor A anunciou a vontade de vender suas terras e muita gente se interessou. Dizem apareceram candidatos compradores até de cidades distantes, mas o fazendeiro com nenhum deles fechou negócio.
Certo dia, quando voltava de um comício, montando seu cavalo baio, o Senhor A se encontrou com um carro na estrada, que vinha do município oposto. Era de tarde e o sol se descambava para trás das montanhas. O motorista parou seu veículo para pedir alguma informação ao cavaleiro. Esse apeou de seu cavalo, encostou sua espingarda que trazia ao ombro na cerca. Aproximou-se da janela do carro e se falaram por dois ou três minutos.
Ao se despedirem o Senhor A tomou o cavalo pela rédea, pegou sua espingarda, pisou no estribo da sela e se jogou para cima. Nesse momento a arma escorregou de seu ombro, se soltou e caiu de culatra ao chão. Houve um disparo com tremendo estrondo na calmaria daquela tarde. As pessoas que ocupavam o veículo viram o homem cair do cavalo e ficar imóvel na poeira da estrada.
O motorista contou que ao tentar socorrer o cavaleiro acidentado, esse lhe agarrou a camisa, arregalou os olhos e balbuciou uma curta frase; - Hoje faz sete anos que essa mesma espingarda matou meu compadre.
Seu corpo foi levado para a cidade grande para autópsia e um mês depois as autoridades concluíram que uma esfera de metal (que na época todos chamavam de pidigôto) penetrou o coração da vítima. A nota dizia que a arma era uma cartucheira calibre 28 e que o cartucho disparado tinha sido recarregado pelo menos seis anos e meio atrás. “ )
- Nossa! – Eu exclamei excitado. – Foi mesmo um castigo para o Senhor A morrer no mesmo lugar e da mesma forma do Senhor B. – Não foi, papai? – Perguntei.
- Mas meu pai não confirmou nada. – Nesse momento estávamos entrando em nosso terreiro e minha mãe acendeu a lâmpada da varanda.
.... F i m ....