O BARBEIRO COMUNISTA

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Dizem que Giovannino Guareschi, jornalista, escritor e cartoonista italiano (1908-1968), quando inventou o personagem de Don Camillo inspirou-se na vida de dois padres católicos que viveram realmente no vale do rio Po; entretanto, não existe um modelo estabelecido para a figura do prefeito comunista Giuseppe Bottazzi, melhor conhecido com o apelido “Peppone”. Dele sabemos apenas que, apesar de marxista, é também cristão, generoso e de bom coração.

Antes de ir morar numa cidade grande, vivi por quase 30 anos num cidadezinha muito parecida àquela onde se desenrolam as aventuras de Peppone e Don Camillo que, por sinal, fica a pouco mais de dez quilômetros de distância. Foi então que tive a oportunidade de conhecer um homem que poderia ser considerado o “Peppone” da situação sendo que, em quase todas as pequenas cidades da Emília, sempre se encontrava um pároco democrata-cristão em oposição a um prefeito socialista ou comunista.

Quase em frente ao prédio onde morava com meus pais, havia uma barbearia que, caso provavelmente único, também funcionava como livraria. Minha mãe havia me dado uma educação cristã e, já no começo dos anos ’60 do século passado, me alertava para eu ter cuidado com os comunistas e, acima de tudo, com o barbeiro que era o líder dos comunistas da cidade; ele, inclusive, havia sido vice-prefeito. Meu pai não ligava para religião, mas era um ferrenho anticomunista, motivo suficiente para eu ficar longe daquele antro do demônio. Não esqueçam os leitores que, naquela época, o comunismo dominava, além da extinta União Soviética, boa parte da Europa oriental e a Guerra Fria estava no auge.

Objetivamente, aquela pequena barbearia numa cidade onde a maioria dos eleitores eram de esquerda, funcionava mais como célula do Partido Comunista Italiano que para cortar barbas e cabelos. Quando, quase diariamente, passava em frente à vitrine, podia ver os “companheiros” discutindo animadamente mergulhados numa nuvem de fumaça de cigarro. Apesar da repulsão que havia sido me instilada tanto pela família como pelos amigos, o que me chamava a atenção eram os livros expostos, de regra bem interessantes, tratando assuntos anticonformistas.

Nunca soube se o barbeiro, cujo nome era Alberto, mas universalmente conhecido como “Berto” era crente ou ateu, mas sei ele casou-se no religioso e que a única filha foi batizada.

Mas, voltando à narração... os anos foram se passando e quando me tornei estudante universitário e os meus horizontes culturais foram se ampliando, cada vez mais parava em frente àquela loja para espreitar os livros que, devido a escassez de dindim (doença típica dos estudantes), não podia adquirir. Até que um dia ele abriu repentinamente a porta de vidro e me convidou para entrar. Perguntou se gostava de um certo livro, respondi que sim, mas que não tinha o dinheiro para comprá-lo. Então Berto, com minha grande surpresa, me ofereceu o volume emprestado e isso me deixou cheio de alegria.

Foi o início de uma amizade que durou vários anos, até eu me mudar para outra cidade maior. Nesse entretempo, sem deixar de ser um bom católico, junto à grande maioria dos outros jovens da cidade me aproximei ao socialismo seguindo a onda do movimento denominado “Cristãos para o Socialismo”. Enquanto o Brasil entrava no clímax da ditadura militar, os movimentos progressistas varriam a Europa e as novas gerações começaram a ver o comunismo com olhos diferentes, embora ingênuos.

Quanto a Berto, era sim comunista, mas diferente do clichê que normalmente nos era apresentado. Vivendo no meio de tantos livros havia adquirido uma boa cultura geral e tinha uma formidável empatia e capacidade de diálogo e mediação, tanto que um meu amigo, líder democrata-cristão, uma vez me disse o seguinte: “Ah, se todos os comunistas fossem como Berto, eu também votaria neles!”.

Berto foi realmente uma vanguarda cultural e, além de vender livros porta-a-porta, frequentemente costumava convidar palestrantes que, em seguida, se tornaram famosos, como o escritor Giampaolo Pansa ou o ex Presidente da República Giorgio Napolitano, então simples deputado.

Posso dizer que ele me ensinou a tolerância, tanto que um dia em que eu receava pela possível volta de um regime fascista, ele me alertou sobre os perigos do fanatismo com essas palavras: “Tenha cuidado, pois existem também muitos fascistas vestindo a camisa vermelha”.

Esse é (sim, ainda está vivo!) Berto, o barbeiro comunista que agora gerencia apenas uma livraria e é tido como uma relíquia viva: um homem de grande sabedoria, amado e respeitado pela população da pequena cidade italiana.

Obrigado, Berto!

Nota: Infelizmente o Sr. Berto veio falecer poucas semanas depois que publiquei esse artigo. R.I.P.

O presente texto se encontra também no meu E-book intitulado: "Memórias de um Jovem Contestador" que pode ser baixado grátis na seção E-livros da minha escrivaninha.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 25/07/2018
Reeditado em 10/12/2019
Código do texto: T6399628
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