Um sujeito medroso



     1. Certa ocasião, Catarina, minha neta, tinha ela de nove pra dez anos, surpreendeu-me com esta esperta observação: "Vô, você é muito medroso!" Diante das inarredáveis evidências, não tive como dizer que ela não falava a verdade. Sou mesmo, desde sempre, um sujeito medroso. Até, já melhorei. 
     2. Mas houve um tempo em que mil coisas me causavam medo. Vou divulgar algumas para que o amigo leitor diga se fui ou não ridículo. Vejam: Eu menino, me apavorava só em ouvir falar no lobisomem. No sertão, caia a tarde, e eu chegava a vê-lo debaixo dos cajueiros, no sítio onde morava. 
     3. Eu, criança, minha mãe e minhas tias inventaram de parolar com as "almas do outro mundo", usando um copo de vidro.
     Abriam sobre a mesa de jantar uma folha de cartolina branca com as letras do alfabeto desenhadas em círculo; e os números, também.
     E davam início à sessão, sem que ninguém pudesse sequer respirar para não quebrar o silêncio, que devia ser sepulcral.
     4. Botavam, de leve,  o dedo indicador sobre o fundo do copo, a alma convidada baixava, saía visitando as letras e números desenhados, e deixavam suas mensagens.
     Pois bem, com medo das almas trazidas pelo copo, eu passava a noite em claro. O candeeiro só era apagado pelos primeiros ráios do sol. 
     5. Meninote, eu tinha um medo danado do inferno, e, consequentemente do Lúcifer. Nesse tempo, ou melhor, os padres daquele tempo ameaçavam suas ovelhas pecadoras com o espeto, em brasa viva, do cão. 
     Essa ameaça me levava aos confessionários para pedir absolvição de pequenas faltas. Um Pai-nosso e uma Ave-Maria - a penitência - e eu estava livre do inferno, até cometer outro pecado. 
     6. Vejam só. Me lembro perfeitamente - Oh! quantas décadas já se passaram! - eu rapazola, da minha estreia num famoso lupanar de Fortaleza.
     Havia deixado, há pouco, o seminário. Ainda guardava comigo os apelos de São Luiz de Gonzaga, exemplo de pureza. Observem, que, nos altares, ele carrega um lírio branco, símbolo da castidade.
     7. Escolhida a "companheira" de lascívia, até adentrar-lhe à alcova, eu tremia de medo, como se "aquilo" fosse um coisa do outro mundo. Com medo do "novo". Mas, no final deu tudo certo, o que, diga-se de passagem, vem acontecendo ao longo dos tempos...
     8. Cresci e fui envelhecendo. Pensei que a idade afastaria, de vez, todos os meus medos. Medo é coisa de criança, imaginei. Qui nada! Continuei medroso. 
     9. Cito alguns medos que ainda tenho, na idade provecta. De relampago, por exemplo.      Evito as ruas quando está relampiando ou relampejando. E acendo as luzes da casa para evitar o susto com o clarão do relâmpago. 
     10. Viagem. Se é de carro, particular ou ônibus, não tiro os olhos da BR, temendo uma derrapagem. Se é de navio, fico de olho nas ondas: uma marola atrevida pode engolir o barco. Se é de avião, viajo com os olhos no céu, na terra, no rosto das aeromoças, e na cabine do comandante. E tome-lhe reza. 
     11. Tenho medo de elevadores, principalmente se lotados: sofro de claustrofobia. Não enfrento multidões: sofro de oligofobia. E de altura, bem alta? Evito-a: sofro de acrofobia. Arre com tanta fobia! Fazer o que, se nasci assim?
     12. Paulo Coelho, no seu livro "Fábulas", conta esta historinha: "A raposa e o leão - Uma raposa nunca tinha visto um leão até o dia em que , em uma trilha da floresta, encontrou-se pela primeira vez com o rei dos animais. Ficou com tanto medo que quase morreu de susto.
     Depois de algum tempo, cruzou outra vez com o leão na floresta e sentiu muito medo, mas não tanto quanto antes. Quando os dois tornaram a se encontrar uma terceira vez, já não sentiu medo nenhum , e começou a conversar com ele como se fossem amigos de uma vida inteira".
     13. E conclui Paulo Coelho: "O medo desaparece quando nos acostumamos com ele".
   14. Preciso me acostumar com meus medos para, afinal, perdê-los. Por enquanto, minha neta Catarina continua tendo razão... "Vô, você é muito medroso"!

     
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 24/07/2018
Reeditado em 16/11/2019
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