A sombra
Ah, o amor! Que coisa mais sublime. Elixir aos nossos contratempos, causa o famigerado “frio na barriga”, não obstante coloque em ebulição nossos sentimentos – e por que não, instintos? O mundo fica diferente porque nós, de uma forma ou outra, ficamos diferentes, passando a ter uma consciência mais leve e inspirada, na medida em que romantizamos tudo aquilo que, no fundo, sempre esteve ali, mas que, como de súbito, adquire contornos mais coloridos e vivos. Eis que, então, nossa paleta ordinária, formada por apenas escalas de cinza, resumida ao usual preto & branco, fica rica, sortida, extraordinária, abandonando o tom monocromático rumo a uma coexistência harmônica de diversas cores; a paleta, pois, torna-se um arco-íris.
Muito bacana este prólogo, não? Não. E vou explicar por quê. Posso estar redondamente enganado, mas o que percebo, de modo geral, é uma correlação entre amor e dependência por parte das pessoas. Tais buscam – desenfreadamente, em alguns casos – umas às outras como uma forma de compensar suas próprias carências, projetando no outro, seja ele de qual gênero for, a fórmula mágica para felicidade eterna. Obviamente, nunca conseguem, pois, por mais que experimentem a felicidade a dois, vindo a, em alguns momentos, atingir um grau de proximidade passível de fusão, e, com isso, surgimento de um só ser que os une e entrelaça, a eternidade não passa de uma ilusão. Ora ou outra, um dos dois, senão ambos, vão se dar conta de que nem sempre o outro é capaz de lhe proporcionar felicidade, e que há momentos em que a melhor companhia é a de si mesmo. A menos que ela não exista, e é aí que reside o perigo, a meu ver: apegar-se de tal modo às relações que nem sequer se cogite a possibilidade de viver só, mesmo que por alguns instantes. Pois, neste caso, é muito provável que a pessoa fuja da própria companhia como o diabo foge da cruz, buscando de maneira compulsiva o outro, a ponto de se tornar obsessivo.
E foi enveredando por esta questão que, dia desses, pus-me a criticar com veemência uma história que me foi contada. Já adianto que não tenho condições de atestar sua veracidade, logo, pode muito bem não passar de uma anedota. Ainda assim, prosseguirei a partir do que me foi dito. Nesta his(es)tória, tudo começa num intervalo de namoro, em que os “pombos apaixonados” decidem dar um tempo no relacionamento. Até aí, nada de mais – desgaste da convivência. O intrigante acontece no decurso deste intervalo, onde um dos “pombos apaixonados”, aparentemente contrariado com o tempo que foi dado, resolve protestar contra o ato, instalando-se na frente do pombal simplesmente para ver sua amada e, quiçá, conseguir tê-la novamente em suas asas. Afinal, ele já não consegue mais viver sem ela.
Sério mesmo? Eu custo a acreditar que isso acontece. E por negar tal possibilidade, quando ela se torna realidade, lá vou eu vociferar contra o absurdo que é esta situação, pelos mesmos motivos elencados alguns parágrafos acima. Porém, para meu próprio espanto, refletindo quanto à verdadeira fúria que isso me causa, descubro que, para criticar alguém por conta desta ação, eu não preciso apontar o dedo para ninguém; basta fazê-lo defronte o espelho. Porquanto, o que subjaz a tais críticas, esconde-se na negação, encontra-se submerso neste monólito de desprezo e aversão, não passa do sufocamento do meu próprio passado. Sim, caro leitor, este que vos escreve já foi igual, senão pior, ao pombo alvejado pela infame verborragia aqui contida.
Até poderia fazer uma descrição minuciosa de quem eu fui neste sentido, mas não acho necessário; contento-me em dizer o óbvio para este texto: já fiz parte da turma dos viciados em amor. Gente que reduz suas vidas a isso, vivendo em perene busca do par perfeito – como se ele/a estivesse em algum lugar por aí, a não ser na mente dos românticos irreparáveis. Aliás, aposto que dirão que só escrevo isso porque ainda não encontrei a minha “cara metade”; mal sabem que eu nem a procuro mais, por ter me convencido de que não há uma metade oca e vazia no meu ser, ansiosa para ser preenchida.
No mais, o que importa neste momento não é exatamente retroceder no tempo, dissecando aquele que fui. O que almejo é, simplesmente, abraçar aquilo que há de oculto em mim para não continuar vulnerável diante daqueles que veem beleza no que considero abominável. A saída, portanto, parece-me clara: aprender com os próprios erros, admitindo-os, sem perder de vista o olhar compreensivo, que torna relativo o binônimo certo-errado. Em dada medida, inclusive, um não sobrevive sem o outro, posto que é impossível falar em acertos sem mencionar os erros, e vice-versa.
Por fim, um aforismo: Que eu aceite o que fui, sem pretensão de continuar sendo, para que alcance o respeito perante os que são.