Mata o Moleque

- “Pega ladrão!” - Eu estava dentro da linha 464 no sentido Centro, compenetrado num livro qualquer, quando ouço os passageiros de dentro do ônibus gritarem.

Tenho um péssimo costume. Entre uma folheada e outra do livro, eu fico com o radar ligado nas conversas alheias. O senso de audição apurado flerta com a conversa franca da senhorinha do banco de trás com a menina pequena e suas notas baixas na escola; passa para o homem brigando no telefone celular com a namorada no banco da frente por motivos de ciúmes de suas saídas com os amigos (da namorada, não do reclamante, ora); e se fixa numa conversa alheia de uma família que vinha de um culto evangélico. Pelo sotaque e pela graça nos maneirismos da fala, num volume alto, supus que fosse uma família nordestina.

Juro pelo bom Deus que o papo era sobre um atraso no pagamento do dízimo. Era um tal de “eu não paguei o dízimo, mas a culpa é sua porque cê me deve”, e a resposta, “eu paguei sim você, só que ela não quis entregar pro pastor”. E debatiam com um fervor e uma categoria retórica sobre a dívida que daria inveja a qualquer missionário. Gostei daquele papo. Dando risadas por dentro, pensei, essa família está em dívidas logo com quem, com o Senhor!

Foi quando o ônibus ficou trancado no engarrafamento nas proximidades do estádio Maracanã em dia de jogo do Flamengo, e o moleque passou correndo feito uma flecha com alguma coisa nas mãos. Ele não devia ter mais de catorze anos.

O povo do ônibus inteiro, que não estava muito cheio, levantou e foi para a janela. Pegaram o moleque na primeira esquina com um celular roubado nas mãos. Os flamenguistas, claro.

- “Mata ele”. “Vagabundo, lincha essa disgrama”. “Brasil deveria ter pena de morte”. - Não foi muito surpreendente ver que era a família dizimista que berrava a plenos pulmões as palavras de amor ao próximo.

Não iria intervir, mas entendi ser necessário diminuir a tensão do apedrejamento verbal contra o rapazote que estava sendo devidamente amarrado com um fio ou corda que não sei bem de onde surgiu. Aparentemente, iriam entregá-lo para a polícia.

Entrei na turba dos justiceiros com os berros:

- Quem não deve não teme (sem o “r” no final, óbvio). Se não pagou, então pague agora. Devedor não vai para o céu. Você não pagou, seu safado.

Olhei para o lado, a família completa me encarava como se tivesse gritado a eles a mais terrível das blasfêmias. Tomei meu lugar no banco, encostei a janela, e abri uma página do livro.

O ônibus arrancou. Silêncio absoluto...

Ulisses Duarte
Enviado por Ulisses Duarte em 18/07/2018
Código do texto: T6393881
Classificação de conteúdo: seguro