A Coleira
A casa era uma edícula, num quintal sem fim, O campo de futebol num gramado maravilhoso, parecia ser tratado, ainda sobrava a quadra de vôlei, toda improvisada, sobre os varais escorados em bambus e taquaras. A frente da casa era toda aberta, numa visão cinematográfica. Era o fim da cidade pequena, cidade de Lambarialva, os matagais, as chácaras e as estradas de terra, tudo tinha seu início bem em fronte àquela humilde casinha. A vida era muito protegida, ninguém se atreveria ir mais longe do que a casa do vizinho, se o tivesse, ou do terreno baldio, desde que esse também não fugisse à vista. Marquinhos e seus muitos colegas, sabiam bem disso, e levavam a sério cada detalhe. Atravessar o terreno ou um campo qualquer, que precisasse de alguns passos a mais, era um desafio, era transpor outro universo, naquela mente pequenina, a cerca era a fronteira, a conquista e o abismo.
De quando em quando Marquinhos saía até a rua e olhava longe uma estrada que ia se estreitando e finalizava numa chácara amaldiçoada, ela era toda rodeada de muros enormes, pelo menos era o que diziam, ele sempre tinha o medo nos olhares que se arregalavam quando chegava lá perto. A entrada da chácara era de portões de madeiras, e antes que chegasse até ela, tinha que passar por uma parreira de uva, que dava um tom todo macabro, escurecia ainda mais aquele lugar. Marquinhos temia e tremia, mesmo acompanhado de seus pais, avós ou tios, chegava a fechar os olhos ao passar por aquele apavorante pedaço de chão. Ali tinha homens terríveis que sequestravam crianças; um dia uma criança morta fora encontrada lá, pendurada de ponta-cabeça, amarrada no suporte da parreira de uva. Isso fazia com que as crianças jamais ousariam ir muito longe de casa, O homem do saco, o saci a cuca, também viviam lá. Então não era nada interessante passar por perto, e o pequenino sabia isso muito claramente. Um dia entrou um carro preto enorme por aqueles portões, pareciam carros funerários, entretanto ninguém saiu de lá. Marquinho delirava; seria o carro fantasma? Como pôde não ter saído!
Um dia o garoto estava brincando frente à sua casa, quando viu um ser gigante de barbas brancas, ele possuía dentes de metal amarelos, um sorriso apavorante. Escondido atrás de um poste de Peroba, tentava ver o que exatamente aquele ser enigmático queria com sua avó. Não chegara a nenhum resultado de sua missão investigatória. Doravante ficara muito mais atento a movimentação daquele lugar nebuloso, assim como o que exatamente ele compactuava com a velha. Seria ambos diabólicos ou ela fora por limites para que não invadisse nosso quintal?
Não é que o menino atrevido, que nem dormia a noite, e já estava tendo pesadelos, encarou seu maior medo, era cerca de dezoito horas da tarde, pouca gente na rua, Marquinho começou sua jornada, suava, e ofegava numa respiração ímpar, cada passo chegava mais perto da porteira, enfim ele estava no exato local das execuções, olhava para cima a parreira seca de inverno assoprava sussurros do além; aceleração cardíaca e pernas bambas o menino ainda deu mais dois passos à frente. Pois não se sabe como, mas o divisor do céu e inferno se abriu como sozinho; era o velho, ele estava como uma cólera de Pitbull na mão, sorriu apontou para Marquinhos, ia colocar aquela cólera e certamente apertá-la até asfixiá-lo. Não se sabe como aquele cambito de menino arranjou tanta força, começou a correr em disparada, tomou caminho desconhecido, avançou terrenos, desbravou quintais, pulou cercas, viu o terreno do fundo de sua casa, encarou brejos, e não mais que de repente, ele entrava em sua casa pelo fundo do quintal, acabara de descobrir o mundo a sua volta.
Este segredo que hoje revelo, acompanhou Meu amigo e eu por pelos menos alguns 365 dias, antes de compreender aquela fantasia. Certo é que o conto não parou por aí.
Marquinhos não tinha muitos dentes na boca, e os que possuía estavam tomados de caries que precisavam de cuidados; uma segunda-feira sua avó aprontou-se e aprontou o neto e disse que iam ao dentista. Caminharam rumo a cidade, foi a caminhada mais linda que já fizera, pessoas bonitas, carros rápidos, sua vovó sorridente cumprimentava a todos; não é que o pivete até abandonará o braço que o protegia! 50 minutos de caminhada estavam frente a um prédio lindo dois andares, ambos iam subir a escada, e o homem lá dentro ia reformar o sorriso de Marquinhos. Alguns minutos de espera e muito tenso, pois o garoto já sabia o quão dolorido seria. Naquele exagero, mal entrou, a secretaria pediu para ele se sentasse abrisse a boca para iniciar o processo. Assim, encerrou os olhos, abriu a boca quanto pode, quando no meio do tratamento o dito cujo resolveu abrir os olhos. Deus, valha-me a sorte, pensou, deu de frente com o velho da coleira, sentiu mijar nas calças de tanto medo. contudo, nada mais tinha a fazer, agarrou o braço da cadeira, voltou fechar os olhos e em pensamento rezava para que não fosse o próximo corpo a ser encontrado, dependurado naquele labirinto demoníaco.