Ela era um BLUES do norte
Era Primavera em Québec.
Eu a via todos os dias pela manhã. Abria a pequena cortina da janela da cozinha, e lá estava ela. Branca, magra e desfolhada. Às vezes parecia santa, mas nem tanto... Mesmo sem ouvir era capaz de escutar seu pranto.
Sob a laje do subsolo um cantinho... Num minúsculo banquinho uma silhueta parecia pesar sobre ele. Era ela. Não sei de onde veio, mas la estava dias após dias magra, branca e desfolhada.
Intrigava-me. Eu na minha constante impavidez e falta de imobilidade não entendia aquela silhueta estática olhando para o nada como se visse tudo.
Minha alma sempre desnuda para o mundo mirava aquela cena intrigante.
Apesar do incômodo eu precisava vê-la todos os dias. Era algo inusitado para o meu cotidiano acelerado.
Num dia em que o Sol estava recluso, abri a pequena cortina e ela não estava lá... Uma frustração tomou conta de mim. Ela tinha que estar lá. Eu precisava daquela visão. Já fazia parte da minha loucura humana.
Horas depois ela surgiu e lá ficou olhando o nada, toda desfolhada...
Sorri. A imagem em ribalta satisfazia minha curiosa e louca visão do cenário atípico.
Por vezes pensei em falar-lhe... Não ousei quebrar aquele silêncio quase mortal para mim.
Penso que ausentar-se e quedar-se na imobilidade seriam formas encontradas para driblar as adversidades. Assim, no vácuo da sua existência flutuaria simplesmente...
Seria essa uma das armas dos mais fracos?
Ela se foi numa manhã. O vento a levou para o norte do norte.
Não me deixou nenhuma lição, mas marcou minha visão. Nunca a esqueci.
Acho que ela era um Blues do norte.
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