Crônicas, Passageiro: olha pro cachorro
Breves, 8 de julho de 2018.
Esta pode ter sido a orientação técnica mais Humana e ao mesmo tempo mais Animal que recebi na vida:
- Carlos, quando quiseres saber como anda financeiramente aquela família, olha pro cachorro.
- Por que?
- Porque se ele é muito magro, quer dizer que não tem sobras.
Paulo Oliveira, grande mestre, ali me mostrou o sentido da palavra INDICADOR, tão usado por mim no meu dia a dia de projetista ao definir formas de monitoramento de ações. Só que, repares, ele disse "Olha pro cachorro" e não "Olha o cachorro". Sutil diferença no ato de olhar o cãozinho como se passasse por mim objeto alheio ao meu ato de direcionar visão. Olhar pro cachorro é culminar interação e possivelmente trocar empatia com aquele ser tão esquálido e ao mesmo tempo tão alegre e puro; relembrar a cadela Baleia de Graciliano Ramos; rever na mente o fiapo de cãozinho faminto naquele rio Camarapi, hoje nem tanto (graças a Deus); pensar na piada que o cachorrinho provoca, pobrezinho a escostar o rabinho na parede pra poder latir. Tá pegando, hein? Toma uma bolacha pra ti. Pega! Quer mais? Mais? Isso! Rapá, até cachopa de urucum tu comes? Foi o tempo.
Cachorro passou a ser pra mim um indicador dos processos e comportamentos. Do soldadesco homem a passear com um pitbull. Do cão frufru da madame. Do chow-chow caríssimo de se ter e manter. Do pit barulhento de uma tia solitária. Do cachorro esguio na proa da rabeta do senhor que vai pro tapiri: vai que topem com uma cutia?
Arrisco a dizer, e na verdade é o que motivou a escrever esse texto, é a possibilidade do cachorro ser indicador de saneamento básico, da saúde pública e do nosso negligente cuidado com a vida urbana. Cocô de cachorro me impede em Belém de dar 5 passos na rua sem atentar pro chão. Eu disse atentar PRO chão. Interagir com o peste que cagou ali em palavras vulcânicas ao perceber que meu solado não escapara.
O que preocupa é a quantidade de cães pirentos em certas cidades que visito. Tal lugar é bem cuidado? Olha pro cachorro. Ferido, esfomeado, abandonado ou sequer sem ter tido donos, a morrer dolorosamente da pira que o maltrata. Sem orçamento para que veterinários possam cuidá - los ou orientar a sociedade de que é preciso se responsabilizar pelo contingente de cachorros abandonados a espocar os sacos de lixo ou te encarar cercado de moscas enquanto comes aquele mixto quente no porto. Olha pro cachorro. Ele não tem culpa. Nós temos.
Sobre nossa semvergonhice de entender tudo isso e assim mesmo fazer de conta que tá tudo bem, aquele ser de quatro patas nos fita e lá de baixo sentencia:
- Seus cachorros!