Crônica do ócio
Sou um leitor compulsivo, leio de tudo, desde bulas de remédios a textos complexos, compridos, até mesmo incompreensíveis, como Ulysses de Joyce.Sou também preguiçoso por essência. Li recentemente o artigo de um desses gurus da autoajuda. O sujeito escreve empolado, um universo filosófico, pregando como conselho, quase uma ordem, a fuga da área de conforto. Entendo o conceito, realmente, buscar novos horizontes ajuda a viver.Tem até aquela frase do Neruda: “Se não escalar a montanha, nunca poderá desfrutar das paisagens”. Acontece que relaciono a palavra conforto ao ócio, o nada a fazer,e isso acaba em desencontro com a ideia de subir numa montanha. E se as paisagens forem feitas de tormentas, querido poeta? Confesso num total desjeito o meu pecado capital, a preguiça. Ela se encaixa perfeitamente ao termo conforto. Se puder, fico o dia inteiro trancado no quarto, vendo tevê, cochilando, comendo guloseimas. Consigo dormir mais de dez horas sem arrependimentos ou remorsos, e acordo bocejando, querendo mais. Meu objetivo maior é exatamente atingir a zona de conforto e por lá me esbaldar, nunca mais me preocupar com dinheiro, trânsito, plano de saúde ou qualquer outro problema. Sossego, tranquilidade, eu quero isso para mim. Sou especialista do ócio, faço do nada a fazer um prazer, transformo horas mortas em momentos de deleite, a quietude me completa. Já ouvi dizer que, mesmo ficando rico, é preciso trabalhar, senão, morre. Quanta bobagem! Se eu ficar rico, nunca mais olharei para os ponteiros do relógio, trocarei a manhã pela madrugada, ficarei acordado até o dia clarear, depois, só acordarei no meio da tarde. O ócio é um doce. Um estimado amigo reserva as manhãs de sábado para lavar o carro. Fico pasmo, espantado, sou incapaz de lavar carros. Esse amigo é daqueles caprichosos:retira os bancos; passa o aspirador por todos os cantos; lustra o painel; lava os tapetes; com esmero, espalha no balde o xampu próprio para carros; ensaboa, ensaboa, ensaboa mais um pouco; joga água por cima, dos lados, embaixo; e seca tudo com um pano limpíssimo. Depois de horas, acha engraçada a enxurrada de suor que lhe escapa pela testa.Certa vez, fiquei por perto, anotando o movimento, senti um cansaço indecifrável, fiquei estático, os olhos perscrutando o inferno daquele sofrimento enquanto ele armava no rosto um tom claro de satisfação. E depois de tudo pronto, quis lavar o meu carro, “Vamos lá, vai ficar limpo e brilhoso”. Neguei de pronto, pensei em Sísifo, pensei em Hércules, lembrei do pai de um amigo, mecânico de trator, vivia enfiado num macacão fedendo à graxa, trabalhava o dia todo. Parecia feliz, mas morreu novo, de repente. “Descansou”, disseram no velório, e achei aquilo uma das maiores ironias que já presenciei. Sem desconfiar da minha colossal preguiça, outro amigo me mostrou o presente que ganhou no dias dos pais: uma furadeira. Para mim, aquilo é uma ofensa. E danou a falar das maravilhas que poderia fazer de posse daquela ferramenta barulhenta. Fiz cara de paisagem, um riso cínico, controlando a vontade insana de por as mãos nos ouvidos e apagar o barulho infernal da furadeira.No dia dos pais, quero ganhar um travesseiro.Outros amigos frequentam religiosamente uma academia de ginástica. “Puxar ferro”, eles dizem, puro masoquismo, respondo eu. No churrasco, não contem comigo para acender a brasa da churrasqueira, para mim, carvão pesa toneladas e desconheço por completo as técnicas para fazer o fogo pegar. Sou bom para cozinhar, piloto bem um fogão, mas não lavo a louça de jeito nenhum. Digo isso apenas como alerta, se alguém, por ventura, resolver me convidar para o almoço de domingo. Aliás, dificilmente irei, domingo é dia de ficar em casa, sem nada a fazer, só um filminho ou um jogo de futebol. Alguns assuntos me apagam, praticar esportes é um deles. Tenho o costume feio de ouvir trinados de pássaros quando a conversa não me agrada. Armo no rosto um riso bobo, parece que estou prestando atenção, mas tudo o que quero é a paz do meu colchão. É o ofício do ócio, como um canto de sereia, me atraindo para a zona de conforto na qual desejo me esparramar.Escalar uma montanha? Só de pensar já me cansei. Reclamo ao Neruda: “A verdade é que não há verdade”, “Sem pressa, tente entender minha alma”, tão preguiçosa...Tenho outros assuntos a tratar nessa crônica, mas meu pecado capital, velho companheiro, agora me abraça.
Sou daqueles que deixa para amanhã o que pode fazer hoje.