Sementes de trigo não se espalham com o vento

Ouvi de longe o soar duma trombeta.

Quando do Alto da torre eu contemplava a imensidão das terras de meu pai.

Já era tarde. O vento frio da noite invadia o quarto.

Alguns dias faltavam para o casamento.

Era tempo de colheita, e as terras estavam molhadas, regadas com o suor dos segadores.

Um calafrio subiu a minha nuca quando ouvi que os tambores começaram a rugir da escuridão.

Então vi uma luz ao longe que dançava como fogo em meio as plantações.

Era como uma brasa ardente que consumia tudo o que tocava.

Ouvi mais uma vez o som da trombeta.

Grande amargura e espanto me tomaram.

Quem ouviu, chorou.

Dentre as plantações, de longe, cambaleando, surgiu o capataz em desespero.

Um archote vacilava em suas mãos.

“Os inimigos caíram sobre nós”. – gritava

“Suas tranqueiras estão sobre nossos muros”

“Seus aríetes como sino, batem violentamente contra nossos portões.”

“O trigo está em chamas. E não há quem o apague.”

Aquela manhã parecia nunca chegar.

O cheiro de fumaça incendiava a fazenda.

Naquela manhã o Sol não apareceu

Enquanto caminhava com meu pai em meios os estragos.

O céu estava cinza, como se as cinzas do chão tivesse alcançado as nuvens.

Havia cinzas até mesmo em nossas almas.

Então meu pai me disse:

O bom pai, a tudo o seu filho conta.

O bom fazendeiro, a tudo seu filho ensina.

Anima-te.

Construiremos um novo muro.

Embebedemos as sementes no azeite e joguemos as entre as cinzas.

Do teu vaso as regará todos os dias até que das cinzas germine o renovo.

Escreva a tua noiva, palavras de consolação.

Escreva que a estação não é oportuna e que há muito o que trabalhar.

Escreva a ela que com vestes reais, por um novo muro entrará e seus convidados serão muitos.

Diga que beberemos vinho para que o ano passe rápido.

E comeremos carne para suster nossas forças.

Diga a ela que com os melhores músicos a presentearemos. Com alaúdes e gaitas de fole será recebida.

E todos verão que até mesmos dessas cinzas pode germinar novos frutos.

E até mesmo esses celeiros podem voltar a se encher de trigo.

Então todos os dias me pus a trabalhar com meu pai. E a cada dia eu contemplava a doçura de seus ensinamentos.

Ele mesmo se agachava sobre a terra, e com suas mãos a amaciava.

Uma a uma ele colocava as sementes entre as cinzas e com doces palavras as regava.

O Bom Fazendeiro se encurva sobre o barro.

O Bom Fazendeiro tem cheiro de terra.

O Bom Fazendeiro diz:

Que as sementes do trigo não se espalham com o vento.

Ao fim do dia bebíamos vinho e comíamos carne.

Cantávamos canções e contávamos anedotas

E a cada manhã uma nova semente brotava

E das cinzas uma nova canção surgia

O trigo crescia sobre a terra como cabelos de uma virgem.

Era Como as plantações que beiravam o Tigre e o Eufrates. Nas planícies do Oriente.

Como colunas de muro o trigo se apresentava.

Crescendo como um renovo.

E de longe, alguns dizem, que podiam se ver fagulhas douradas saindo de seus ramos.

Até a lua parecia sorrir para a plantação do fazendeiro.

O Bom fazendeiro constrói muros feitos de trigo.

Um tempo para colher. Um tempo para semear.

As folhas verdes do verão estão me chamando para casa.

Era tão bom ser jovem aquela época.

Na temporada da fartura.

Quando os bagres saltavam, tão alto quanto o céu.¹

Então chegou o grande dia. Em uma carruagem, de longe, viria minha amada.

Os preparativos já estavam postos. Os músicos desembainhavam suas gaitas e os cantores seus alaúdes.

Eis que através dos muros eu a pude ver.

Poeira subia da estrada por onde a liteira passava. Os cavalos se revelavam ao assentar da poeira.

De súbito lembrei-me dum antigo cântico:

Quem é esta que sobe do deserto, como colunas de fumaça, perfumada de mirra, de incenso, e de todos os pós dos mercadores?

Eis que é a liteira de Salomão; sessenta valentes estão ao redor dela, dos valentes de Israel;

Todos armados de espadas, destros na guerra; cada um com a sua espada à cinta por causa dos temores noturnos.²

Pelos portões entrou a liteira, sacudindo.

Quem trilhava o caminho era o trigo que como muros margeavam ambos os lados da rua.

Não havia tapete vermelho. Mas a terra era vermelha.

Ao ver minha amada descer da liteira meu coração palpita.

Então.

Parado no meio do mundo senti chegar meu momento

Olhei pro mundo e nem via nem sombra nem sol nem vento.

Ah quem me dera agora de eu tivesse uma viola pra cantar. ³

Minhas palavras já estavam a porta de meus lábios quando disse a ela:

As minhas vestes são de palha. As suas de linho fino, puro do Egito.

Vestida de graça tu vens a mim óh mais bela entre as mulheres. Tu tens o cheiro da canela e da acácia e teu amor é mais doce que o mel.

Com simplicidade teus pés foram calçados e de doces frutas sua alma se alimenta.

Tu é como as rosas de Sarom, como o lírio dos vales.

Se as palavras são vento. Não serão as promessas do homem ventania?

E de que vale os seus votos?

As Palavras são vento, mas não é delas que a alma se alimenta?

Qual é o sábio que entende esse enigma?

Pois De que se nutre a alma senão de palavras.

Qual o peso da palavra do homem? Quem pode pesar?

Se palavras são vento, os votos também são.

Se palavras são vento o homem também é.

Aquele que segue a honra por medo, para nada serve. Vacila como o ébrio vacila pelas ruas.

Mas se olhares para o trigo que nos cerca.

Verá que é o seu fino caule é quem rompe terra.

Verá que a palavra do trigo é o seu fruto.

Se a palavra do trigo é a sua semente. Poderia o homem ter igual palavra?

Porque o bom fazendeiro diz que as sementes do trigo não se espalham com o vento.

Porque Qual o caminho do homem na terra?

Se na terra ele também foi plantado. Se ao julgar uma laranja por azeda?

Não é justo que pelos seu sumo o homem seja também julgado?

Se palavras são vento. Quem pode dar crédito ao votos dum homem?

Escuta. Pois encontrei a resposta.

Olhe para o alto. Para o caminho das águias nos valados.

Olhe para o caminho da pomba nas penhas.

Ou o caminho do sol depois do meio dia

O caminho da ovelha que trilha o pasto.

Olhe para gazela solitária em prantos por seu filhote.

Olhe Para a mão do Fazendeiro que se agacha para afofar a terra.

Ou o caminho do trigo que rasga o chão com o ímpeto da graça e da beleza.

Nessas 7 coisas não há contradições.

A verdade testifica delas.

Não há lógica. Não há razão.

Não é o sol o mesmo desde sempre?

Não aflige ele a cabeça de todos os homens?

Tal e o Sol da Justiça que tudo contempla e tudo redime.

Se como está escrito. Pela boca de duas testemunhas está feito o negócio.

Não será o Sol Testemunha de nós todos.

Pois o Bom fazendeiro conhece das estações.

Então diante de tal ressalva, Para ti, tenho feito meus votos.

Que não se espalharão.

Assim como a semente do trigo não se espalham com o vento:

Por ventura não é toda a mulher rainha de sua casa, e sobre seus pés se estendem todas as suas posses?

Engana-te em dizer que foi nas estrelas que estava escrito o nosso destino. Ou ainda nos ventres de nossas madres ele foi traçado.

Na verdade te digo, que desde a eternidade tu esteve em mim.

Das minhas costela foste tirada. Agora somos Dois em uma só carne. Nossas almas, entrelaçadas, separadas por um fino véu.

Não é a mulher a coroa de seu marido?

Não era Eva a coroa de Adão?

Levanta-te, meu amor, formosa minha, e vem.

Tirai o véu.

As nossas vinhas estão em flor.

O trigo está pronto para ser atado em molhos.

Entremos na casa de nosso pai. Consagremo-nos um ao outro com perfumes e amores.

Tomemos um bom banho.

Hoje, dentro dos muros de meu pai digo:

Tu és minha e eu sou teu.

E naquele dia não foi preciso jogar arroz nos noivos, pois os bagos do trigo já estavam pesados e se curvava sobre eles, de ambos os lados formando uma trilha coberta para o altar.

Por entre as plantações surgiram faíscas douradas dançando entre as folhas, ao som dos violinos e das gaitas de fole.

O cantores estavam alegres de vinho.

Tudo estava em movimento. Como no dia da criação.

Todo o reino ali cantava uma canção e dançavam. Porquê nunca antes fizeram assim. E houve ali, mui grande alegria.

Naquela fazenda do Bom Fazendeiro.

Muitos viram. Outros talvez.

Que o Bom Fazendeiro construía muros de trigo.

E que as suas sementes não se espalhavam com o vento.

¹ - Trecho da música – The Green leaves of summer

²- Cantares de Salomão: 3:6

³- Trecho da Música Ponterio – Edu Lobo.