A um amigo... lágrimas

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Por que, Deus? Perguntam-se talvez algumas pessoas agora, silenciosamente. Alguns rostos são flagrados com a marca sombria da dor estampada. Lágrimas caem em direção ao chão, molhando áridos semblantes ressecados pelos descuidos nos tratos. Apenas se chorou depois do acidente: nem banhos, nem refeições, nada. Apenas lágrimas!

Há pessoas demais aqui. Algumas nunca vi. Parecem tristes. Alguns reencontros, porém, provocados graças à tragédia, são festejados. Abraços demorados; saudações fervorosas. Por instantes, disperso as atenções e me perco, quase destoante da realidade, em meio a esses meneios de sorrisos efêmeros.

Ao meu lado, um pouco à retaguarda, comentam o motivo do acidente. De todos os cantos, até onde minha percepção auditiva consegue ir, ouço pessoas tentando narrar, a seu modo, como tudo aconteceu. Ouvindo separadamente a história de cada um, numa triagem auditiva, como se tivesse o poder de separá-las, tenho a impressão de estar ouvindo discursos fúnebres de vários acidentes. Já não há uma vítima apenas, mas uma “família” de vítimas! Tenho vontade de sorrir diante dessa catarse humana. Os homens! Que potencial criativo temos! Damos formas esdrúxulas a fatos tão objetivos! Ele está morto, ora!

Divaguei demais, perdendo, por instantes, o foco único e real da morte. Apenas ele está morto. Fico sério. Apenas ele está morto. Apenas ele está morto.

Que diferença faz se morreu em função do impacto da queda ou por causa do peso do veículo que lhe esmagou a cabeça após o capotamento? Ele está morto e isso é o que vale! É essa realidade que sufoca o coração de mãe que agora chora ao lado do féretro do filho perdido.

O velório seguirá até o meio-dia. Queria tanto ficar; compartilhar um pouco da imensa dor que emana de cada parente do morto e de um e outro amigo, mas darei aula logo mais. Os alunos têm o direito ao mágico processo ensino/aprendizagem.

Estou mal. O que faço? Finjo? Dou minha aula como se nada estivesse acontecendo ou mostro que o infalível mestre também tem sentimentos, possuindo, agora, o vulnerável invólucro humano abalado e fugidio.

Tenho que ir. Meu tempo aqui está se exaurindo. Não posso sair sem um último adeus, sem uma derradeira visão do amigo que se nos deixa prematuramente. Preciso guardar a última imagem dele.

Há pessoas demais aqui. Entro na fila da despedida. Meu tempo está acabando. Por que demoram tanto ao lado do corpo?... Chegou minha vez. Ele está desfigurado. As marcas deixadas pelo impacto transformaram-lhe o jovem rosto afilado, restando, ainda, respingos de sangue. O sangue razão da vida. Agora, angústia da morte!

Observo-lhe as feições mais de perto. Fecho os olhos. Recordo o último instante que tivemos juntos. O último sorriso. O derradeiro “até logo”. Aproximo-me do visor. Não consigo imaginá-lo assim. Displicente, cai-me uma gota dos olhos. Lágrima? Sim. Ponho a mão, carinhosamente, sobre o vidro. Espalho, gota a gota, cada lágrima que teimosamente cai. Elas banham o anteparo que separa minhas mãos do corpo inerte. Algumas pessoas da fila parecem impacientes...

– Que horas? Pergunta-me alguém.

– Dez horas, respondo.

Dez horas! Perdi o horário. Chegarei atrasado. Que se danem os alunos! Ficarei até o fim!

Ouve-se o toque de silêncio. O féretro desce ao aposento último da existência. Busco agarrar-me em algo, mas todos – familiares e amigos – sofrem agora.

Antes de sair, observo os retoques da construção. Prendo-me às feições do pedreiro finalizando o fechamento do túmulo. Caem-me as últimas lágrimas. Despeço-me e vou embora.

A morte será mesmo a última etapa da existência? Tudo se finda depois da morte? Devemos sofrer em função daqueles que se foi? Sofremos por amor ao que partiu ou por egoísmo, por não sabermos nem aceitarmos como nós viveremos sem ele? Perguntamos como ele ficará sem mim ou sempre refletimos sobre como ficaremos sem ele?

Reflitamos enquanto a nossa morte não vem!