Assim ou ...nem tanto. 144

Imaginação

Nasce-me o dia assim toldado. Sei do rio. Sinto-o caudaloso trazer a enchente e a derramar aqui os excessos. Água e lixo como se a sua boca fosse aqui e o vómito viesse podre ao meu lugar. Não dizes nada? Falas na mudez dos teus olhos do peixe que vem junto, do breve que será o transtorno e da riqueza que fica na terra cheia de húmus onde plantarei o que quiser. Couves serão e feijões que outras faltas não dá a terra. Queria outra voz e nova língua e pernas, coxas, seios e nádegas. Queria afogar-me em pele e nela cozinhar os meus brados e ódios, adormecer exausto e nascer viçoso e perfeito. Mas não será assim, o que sou, homem sem jeito, ficará depois da enchente ainda mais rude, mais desesperado, mais cinzento como o lado triste desta vida, amarga. E tu a mesma invenção calada, os olhos que hoje quero verdes e aterrados e que amanhã, depois de tudo ajeitado, castanhos serão, brilhantes, sequiosos me dirão belo, príncipe com castelo e cordão de ouro. E com os olhos o resto, quero sem muito querer, também as mãos e doces os dedos, quero, imaginação, palavras com música, vento leve… e desejo, ainda que breve, um amor daqueles que quando acabam nos deixam marcados a ferro e fogo. Se doer, doeu. Se para outro que chegue depois já não haja livre o coração, hei-de inventar espaço, arrancar o velho e morto, apagar as memórias, rasgar as fotografias, todas em que estiveres e te rias e esquecer tudo. O novo amor quero-o então para sempre se o que vier primeiro se extinguir como fogueira apagada, se vier como ensaio para o que realmente me falta: tu.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 01/07/2018
Reeditado em 02/07/2018
Código do texto: T6379011
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