Restauração

Para saborear um bom vinho, é preciso beber água, pois ela ajuda a tirar da boca qualquer outro sabor que interfira no paladar. Para sentir o aroma de cada perfume, é preciso, às vezes, cheirar grãos de café a fim de zerar o olfato e poder perceber o verdadeiro aroma. E se a proposta for viver a vida/presente plenamente? Foi só chegar aos cinquenta para entender as próximas duas décadas como um período a ser degustado com todo o prazer do mundo. Já não sinto graça em muitos filmes, músicas, lugares e pessoas pela previsibilidade apresentada.

Quando olhamos a nossa vida em tela de Da Vinci, percebemos as muitas camadas de verniz, fosco ou brilhante, que nos protegeu a cada fase. O primeiro é o da linguagem. Educação é filtrar palavras e gestos no pântano da existência, até que só passe o aceitável, controlando, ao mesmo tempo, o prolixo corpo na velocidade das sensações.

A religião deveria nos aproximar da liberdade do Criador, entretanto nos obriga a um verniz múltiplo, que deixa fosco o pecado e dá brilho na virtude. Mas não engana olhos treinados... Vem outra forte camada quando assumimos o papel de mãe (ou pai). Encobrimos todas as possíveis desvirtudes e ensinamos com maestria o melhor daquilo que muitas vezes nunca aprendemos. Modelo de prudência, carinho e retidão com direito a camada dupla resistente aos golpes da vida, incluindo a ingratidão de alguns rebentos.

Há, também, a grossa camada de verniz profissional, que além de esconder blinda e camufla. Esse é especial e se ajusta à função ocupada.

Por viver no Rio de Janeiro, o meu verniz mais recente é o do medo, que, além de ser escudo natural contra o faroeste carioca, tem servido para tudo, desde fugir de convites chatos à autossabotagem, quando a possibilidade de me viciar na alegria me apavora e imobiliza.

Sinto muito! Quando vemos, metade da vida passou e não sentimos mais nada. Ninguém nos conhece. Olhamos no espelho de dentro procurando a nossa imagem no centro da tela e nem sombra do que fomos. As grossas camadas de verniz esconderam radicalmente a obra original. Para viver a essência do tempo restante, é preciso coragem, dando início a um processo delicado e urgente de restauração. É necessário retirar uma a uma as camadas protetoras até que nossa imagem seja reencontrada na plenitude de suas cores. Não mais... É claro que há risco de alguns gostarem mais do verniz, mas os sabores, cores e odores, não admitem proteção para serem recuperados e atualizados. O toque apaixonado do novo amante precisa ser sentido sem que a pele se lembre de outros toques.

Se assim nos permitirmos, novamente com o encantamento de criança poderemos ser mais plenos... e libertos. Com o risco de chorarmos um pouco de dor ou prazer, inerente ao foto de estarmos vivos, daremos de vez em quando uma “pegada” nessa tal felicidade.

Stella Motta
Enviado por Stella Motta em 01/07/2018
Reeditado em 01/07/2018
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