Assim ou ...nem tanto.143
O espírito
Olha sem ver. Olha para tão longe que fica separado do corpo. À distância passaria por estátua tão imóvel está, tão parados os olhos, tão ausente como se não estivesse. Há calor e a camisa larga enche-se de um vento ameno e infla. Quedam-se as mãos fortes nas coxas e a boca levemente entreaberta mostra, perfeita, uma fila de dentes. Lá em baixo os homens recolhem as alfaias depois de lidar a terra. O sol desce e tudo o que toca se incendeia de cor e se transforma. O silêncio domina tudo. – Um dia quero ir onde vai o teu espírito, disse-lhe a mulher puxando-o para dentro. Ele trouxe os olhos para a sala e viu tudo como se nunca ali tivesse estado. Eram sempre assim os seus regressos. Afagou o espaldar da cadeira, ajeitou os cabelos e ficou a ver o movimento das ancas da esposa a atiçar o lume, a dar a volta ao caldo, a espreitar o assado. – Um dia quero ir onde vai o teu espírito, repetiu. – Para ires aonde levo o meu espírito te basta soltar o teu do cansaço dos dias. Se te libertares de pesos e regras, se começares a esquecer os caminhos comuns para sobrevoar a serra como se nenhum outro poder te impedisse, tocas o outro lado do muro, da sebe, da sede. A seguir desces ou ficas a pairar como uma águia e, tal como ela, verás do alto a importância, a quinta, os escravos à roda do mesmo, os animais. Se subires um pouco a solução que não havia vem sozinha aos teus cálculos porque nada do que se veja pequeno tem poder de mando. E voltarás outra porque sempre nos mudamos quando saímos do que nos prende.