“Você só fala no Hélio” A difícil missão de terminar um relacionamento e ter que esquecer
Hélio odiava surpresas. Pelo menos no começo. E eu amo surpresas. Sempre insisti. Lembro de dois episódios que me marcaram: ele com 41 anos falava o tempo todo em ouvir os seus discos de vinil. Pesquisei, na época foi difícil encontrar, parcelei em 10x. Quando chegou na minha casa meu pai cresceu o olho e fiquei triste por não poder comprar dois. Levei de táxi até o apartamento dele (ainda não tinha Uber!) no dia 25 de dezembro, era presente de Natal. Quando ele viu aquela caixa enorme, tirou o papel de presente mas não abriu a caixa, começou a fazer discurso que não queria aquilo, como eu fui gastar todo aquele dinheiro. Hélio ama(va) discursos.
Teve também aquela vez das alianças de compromisso. Comprei a mais cara porque era a mais bonita, prateada com um fio bem fininho de ouro em uma lojinha de Madureira. Era presente de 6 meses de namoro. Quando ele abriu a caixinha, perguntou:
“Por que está me dando isso? É um pedido de noivado?”
“Óbvio que não, né? É de compromisso não está vendo a cor?”
“Na minha geração não tem isso! Minha família vai achar que estamos noivos!”
E sem querer as alianças caíram no chão. Eu costumava zoar ele dizendo que ele tinha jogado no chão de propósito. Isso depois de 3 anos, na hora, fiquei tão magoada que chorei.
Mas teve uma surpresa que ele amou: com um mês de namoro enchi a sala do pequeno apartamento em Botafogo com 30 balões com fitas e na ponta de cada coloquei um cartão escrito uma palavra que nos representava naqueles 30 dias juntos. Hélio foi o gás que me fez voar, me levou aos céus.
Com ele aprendi a fazer e a tomar café. Sobre política (um pouquinho porque até hoje ainda é complexo pra mim), sobre o PT, sobre História, Espanha, Ilhas Canárias. Conheci Jack London, Melody Gardot, Moby Dick, Alexandre Dumas. Ensinei a ele sobre Paulo Freire, Chaves, Tom e Jerry, Jorge Vercillo, Nando Reis e Libras, principalmente que não se pode mais falar mais surdo-mudo, e sim apenas surdo pois o surdo não é mudo.
Engordei 10kg no nosso primeiro ano. Ele queria me fazer experimentar cada lugar, cada comida boa que ele conhecia. Acho que no fundo ele tinha pena da nossa diferença de histórias, eu uma suburbana nascida e criada em Marechal Hermes, separada com uma filha de 7 anos, que lutava todos os dias entre trabalho-faculdade-maternidade, não necessariamente nessa mesma ordem. Ele nascido e criado em Copacabana na Zona Sul. Experimentei "molleja", "morcilla", ostra, comida japonesa. Mas também comemos podrão e pizza do Terceiro Milênio, pizzaria perto da minha mãe.
Depois de 5 anos, acabamos. Claro que não foi assim tão simples, costumo dizer que poucas coisas na vida funcionam assim como preto no branco, a maioria são roupas. Ainda mais quando se trata de coração. Não sou hipócrita, acredito que ninguém te preencherá 100% como esse amor romântico que crescemos ouvindo diz. Nada é 100%, nem pílula anticoncepcional!
Hélio e eu dividíamos quatro grandes paixões: livros, crianças, cachorros e escrever. Uma vez escrevi um texto chamado “O Cemitério de Amores”, que fala metaforicamente de um lugar onde guardamos todas aquelas pessoas que somos obrigados a matar em vida, depois que o relacionamento acaba. Ele ficou encantado. Depois do nosso fim, tive que dizer que eu estava colocando mais uma lápide no meu cemitério. “Não gosto mais desse seu texto” foram as palavras dele.
A verdade é que achamos que aquela pessoa precisa morrer mas é exatamente nesse momento que ela fica mais viva. São tantas lembranças flutuando na sua cabeça que me lembra o Bob do desenho. São tantas histórias. Nós não somos feitos delas? Aí você se depara com sua própria filha te reaprendendo “Pare de falar no Hélio senão ninguém vai querer ficar com você”. E como se não bastasse, conhece alguém que confirma a hipótese de uma adolescente de 13 anos: “Você só fala no Hélio”
Por que é proibido afinal de contas? Falar de alguém que te marcou o peito, a história, a vida? Por que há esse incômodo com quem chegou antes de você na vida de alguém? Hoje eu sou quem eu sou porque o Hélio existiu em mim. Somos a soma desses amores que passaram por nós, até aquelas que deixaram só ranço, nos ensinaram sobre algo, sobre como não ser, não fazer. Mas essa sociedade costuma acumular hipocrisia. Você pode chorar e colar seu coração, desde que seja com algum amigx. Nunca com um crush, nunca com a próxima pessoa. Tenho uma amiga que diz que não se deve falar nada para a próxima pessoa que está entrando na sua vida, ela ainda briga comigo quando eu falo. “Ninguém precisa saber da sua vida pregressa” diz ela. Talvez a maioria das pessoas, por conta disso, deseje fazer como Clementine em ‘O brilho eterno de uma mente sem lembranças’ radicalmente apagando as lembranças do passado da mente. Eu prefiro ser do contra. Sempre.